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Revista Luz & Cena
Fazendo Música no Estúdio
O pensamento musical na mixagem
A comparação com músicas de referência
Rodrigo de Castro Lopes
Publicado em 22/02/2016 - 00h00

Além da ordem de abertura dos canais durante a mixagem, discutida aqui no mês passado, existem outras decisões que a gente toma o tempo todo no estúdio e que alteram o resultado artístico do trabalho - nem sempre para melhor.

Algumas das decisões são tomadas usando como referência outra gravação, algum trabalho escolhido por sua excelência. Mas essa comparação não é simples. As duas músicas foram gravadas com instrumentos diferentes, tocados por outros músicos, em outra sala e com captação diferente. E, o mais importante, com outro arranjo.

O arranjo pode ser encarado de várias formas. Se a gente pensar nele como um mapa para organização de frequências, as ferramentas adequadas para comparar duas gravações seriam o analisador de espectro e o medidor de nível RMS. Na masterização de um disco, em que todas as faixas devem ter o mesmo nível aparente, teoricamente o trabalho estaria "correto" se todas as faixas tivessem distribuição parecida da energia em todo o espectro e mesma intensidade dB RMS.

Vamos observar como isso funcionaria no mundo real quando trabalhamos com música em uma situação bastante encontrada por engenheiros de masterização: coletâneas. Dependendo do critério da produção, coletâneas podem reunir qualquer coisa, com o maior grau possível e imaginável de variações artísticas e técnicas em um só álbum.

Como exercício teórico, imaginemos um disco em que uma música de trombone solo é seguida por uma faixa de triângulo solo (apesar de já ter encontrado músicas quase tão diferentes quanto isso). Pela natureza dos instrumentos, é óbvio que é ímpossível igualar a energia das diferentes faixas do espectro harmônico. Daria para igualar a intensidade RMS, mas com certeza o triângulo ia ficar muito alto. Muito! E um músico criativo pode escrever uma música com dois movimentos, um para trombone e o outro para triângulo, não pode?

Qual é o critério, então, para comparar duas faixas diferentes? Se pensarmos na organização dos elementos musicais, poderíamos dizer que elementos com igual importância no arranjo devem ter a mesma intensidade ou tamanho aparente. No caso do triângulo e do trombone, por exemplo, um tamanho aparente apropriado certamente fará com que o trombone tenha muito mais energia sonora do que o triângulo - mas é assim que funciona. Por diversos motivos, o triângulo não precisa ter o mesmo nível de energia que o trombone para ser percebido e entendido como parte da música. Por onde começar, em um arranjo com muitos instrumentos?

A primeira referência deve ser o elemento mais importante nas duas gravações que se quer comparar. E o elemento mais importante nas duas é o instrumento ou voz que interpretam a melodia principal ou elemento condutor da música. Pode ser interpretada por cantores ou até pelo triângulo e o trombone mencionados no exemplo. Se as duas melodias forem percebidas como tendo a mesma intensidade, o cérebro vai entender que o volume das duas músicas está compatível. Da forma como entendo, essa é a referência para igualar duas gravações diferentes, inicialmente.

Provavelmente, a referência escolhida tem um estilo parecido com o da música em que se está trabalhando. Nesse caso, a ideia é observar se há quantidades aproximadas de energia em instrumentos que tenham funções similares nos dois arranjos depois de a intensidade relativa das melodias ter sido ajustada.


O questionamento levantado é relativo à forma de ouvir quando estamos trabalhando com música. Uma vez que estamos lidando com uma narrativa artística, o critério usado na tomada de decisões deve ter como objetivo valorizar essa narrativa. Me parece que nada poderia ser mais importante do que isso. O que às vezes dificulta é que instrumentos diferentes podem estar desempenhando a mesma função, e deve haver uma hierarquia na presença dos instrumentos, dependendo de sua interação com a melodia em cada momento. Essa categorização se torna mais eficaz quando busca valorizar os elementos mais interessantes para o ouvinte a cada momento - sem prejudicar a melodia.

Quero com isso chamar a atenção para a importância de adquirir ferramentas para entender o discurso musical, percebendo os naipes em que os sons estão organizados e a hierarquia desses sons na música, sempre tendo a narrativa como foco. Pensando dessa forma, e partindo do fato de que cada peça de equipamento alterará o áudio de maneira única, a escolha da ferramenta deverá ser feita com base no quanto cada uma valoriza o discurso musical, e não na "qualidade técnica". Em outras palavras, a técnica deve estar inteiramente a serviço do discurso.

Pensando dessa maneira, até a escolha de microfones e prés é baseada em conceitos estéticos. Não haveria, a priori, um microfone melhor do que outro para gravar determinado instrumento, e sim microfones mais apropriados para cada instrumento dentro daquele arranjo, tomando como base a intenção do arranjador. Por isso é fundamental, a meu ver, que os engenheiros de mixagem busquem algum tipo de formação musical, além da formação técnica.

Com isso, não quero dizer que, necessariamente, é preciso estudar teoria musical. Há excelentes músicos autodidatas ou músicos que tocam música folclórica, que possuem uma noção muito clara da organização dos sons nas músicas que executam sem obrigatoriamente saberem analisar a forma ou a harmonia, como um músico erudito faria. O engenheiro de mixagem também pode desenvolver um entendimento próprio da música baseado em sua experiência e convivência com músicos, sem estudar música formalmente. Mas ele deve ter algum esquema de organização musical dos sons.

O trabalho que fará durante a mixagem é essencialmente musical, e não técnico, partindo desse ponto de vista - pois a técnica é ferramenta, e não meta. Conhecer a ferramenta sem estudar a meta é como aprender a dirigir um carro e não saber para onde ir. A meu ver, a função do conhecimento técnico do engenheiro de mixagem é trazer ferramentas para auxiliar seu trabalho como maestro dos sons gravados.

Rodrigo Lopes é engenheiro de áudio graduado na Berklee college of music e bacharel em
música pela Universidade de Brasília. Indicado ao grammy 2015 na categoria engenharia de Áudio e ganhador do Prêmio Profissionais da música 2015 na categoria engenheiro de mixagem, trabalhou na Visom, Polygram, Herbert richers e Biscoito Fino. Atualmente leciona matérias de áudio e de música na Faculdade Souza Lima, em São Paulo. Site: www.rodrigodecastrolopes.com.br
 
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