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Revista Luz & Cena
Produção Fonográfica
Gravação de Voz (Parte 1)
Esfregar o assoalho e, depois, caratê!
José Carlos Pires Junior
Publicado em 01/08/2015 - 00h00
Quando planejamos uma gravação de voz, as principais dúvidas e ansiedades que surgem são, em geral, com relação ao equipamento a ser utilizado e a forma de utilizá-lo. Porém, um arsenal poderoso de microfones, pré-amplificadores e cabos não vai garantir que você tenha a melhor tomada de voz para uma canção se não forem observados aspectos musicais imprescindíveis. Nesse sentido, quem lembra das horas intermináveis do Daniel San, do filme Karatê Kid, esfregando o assoalho, vai entender a brincadeira do subtítulo. Ou seja, antes de falar sobre microfones e equipamentos, precisamos treinar e aprender coisas que não parecem ser tão divertidas, mas são imprescindíveis.

Inicialmente, precisamos entender alguns aspectos importantes sobre a grande maioria das músicas que possuem vocais. De maneira geral e simplificada, independentemente do gênero musical, quando a voz canta uma melodia unida a uma poesia, temos uma canção. Isso vale para quando tratamos do heavy metal e suas variantes, e também para quando tratamos do rap ou pop. Um dos aspectos mais importantes para uma boa gravação vocal é preservar a inteligibilidade da informação. Vários produtores, como Bob Owsinski, David Gibson e Paul White, afirmam em seu livros e entrevistas que se você tem uma canção com uma voz bem captada e bem mixada você tem meio caminho andado.


Boa parte dos meu alunos de Técnicas de Gravação II (vocal) estão sempre ansiosos para descobrir tudo sobre a sonoridade dos microfones e seus posicionamentos. Essa ansiedade, na maioria das vezes, tira o foco do objetivo principal e se torna uma distração tanto para o aluno quanto para o produtor musical. Então, pra diluir um pouco essa ansiedade, minha estratégia é ligar todo o ferramental que temos (microfones, pré-amplificadores e compressores) e realizar experimentações com microfones caros, baratos, valvulados, transistorizados e, inclusive, dinâmicos. Depois dessa euforia de ver, montar e ouvir vários sons, é necessário colocar o foco no processo que antecede a gravação.

Claro que as preferências de sonoridade começam a surgir nesse momento, inclusive os alunos começam a perceber as minhas preferências particulares e procedimentos técnicos pessoais. Porém, nessa exploração inicial, nós começamos a perceber que generalizações como as que afirmam que "microfones valvulados são mais quentes" podem ser uma "meia verdade". Principalmente porque essas características podem ser modificadas pelos fabricantes, como é o caso do Neumann M-149, que, por ser valvulado, deveria ser muito encorpado e com menos brilho, mas ao contrário da expectativa geral, tem uma característica moderna e brilhante. Depois dessa euforia inicial e com os ânimos mais calmos, começamos realmente o trabalho e pesquisa sobre como gravar um cantor.

REFERENCIAL ESTILÍSTICO

Quanto mais você conhece sobre o gênero e estilo que está gravando, menos bobagens irá pensar, fazer ou falar. Na minha opinião pessoal, um produtor musical com muita experiência de escuta vale tanto quanto um com muita experiência de gravação. Isso porque um produtor pode passar a vida inteira gravando de maneira inconsistente, sem conhecer minimamente o material que se propõe a gravar. Por outro lado, um bom audiófilo pode dar um banho de cultura e "repertório" pelo simples fato de estar mais familiarizado com a música a ser produzida. Nesse sentido, é altamente recomendável uma boa conversa com o cantor para saber de suas referências e preferências musicais. Com essas informações, gaste tempo ouvindo essas referências e tente, na medida do possível, se envolver com esse material sonoro focando não somente no som, mas principalmente no conteúdo cultural envolvido com esse material sonoro.



"Um produtor musical com muita experiência de escuta vale tanto quanto um com muita experiência de gravação"



ENTENDA DE TÉCNICA VOCAL

Não são todos os produtores musicais que têm a oportunidade de estudar música formalmente em universidades ou conservatórios. Mas os que tiveram a oportunidade de frequentar esse ambiente musical certamente tiveram aulas de Técnicas Vocais, Coral ou, ainda, Regência. Por sorte, tive todas essas disciplinas na minha graduação (mesmo não sendo cantor), e essa experiência com o canto me permite acessar o cantor pelas vias técnicas, sonoras e fisiológicas.

O conhecimento sobre técnica vocal permite ao produtor entender o nível de dificuldade na emissão de algumas passagens e auxiliar o cantor a atingir o resultado esperado, sem estressá-lo ou sem exaurir as possibilidades de conseguir um bom take em um espaço curto de tempo.

RESPIRAÇÃO

Cantores precisam conciliar sua respiração com as frases. É muito importante sentar com o cantor e reavaliar os pontos de respiração durante as frases, de modo que os fins de frase não fiquem fracos ou espremidos. Em contrapartida, o canto não pode ser transformado em uma demonstração de capacidade pulmonar. Pra facilitar, use as vírgulas, fins de frase e saltos melódicos para marcar os pontos de respiração. Depois disso, treine com o cantor, preocupando-se em manter o conforto vocal e físico. Não é o momento de sobrecarregar o cantor com aspectos de afinação e dicção. Mesmo um cantor experimentado possui vícios e preferências que prejudicam o desempenho vocal. Por isso, seja solidário e mostre a ele que respiração é a base da construção do canto, seja qual for o gênero ou estilo.


AFINAÇÃO

Para um cantor, a alcunha de "desafinado" pode ser uma das maiores ofensas possíveis. Não é sem razão que João Gilberto interpretou a famosa canção Desafinado, de Tom Jobim e Newton Mendonça. Porém, existem vários cantores consagradíssimos que têm sua afinação um pouco "frouxa" e nem por isso são menos importantes. Inclusive a desafinação na voz de alguns cantores soa mais como um estilo do que como um problema. Particularmente, não gosto de correção com Melodyne ou similares. Prefiro atacar a raiz do problema. A palavra-chave é "pré-produção". Uma boa pré-produção corrigindo esses problemas vai fazer com que horas de edição sejam poupadas. Além do mais, acredito fortemente que qualquer cantor, com treinamento adequado, pode cantar bem afinado.

Então, marque seções de ensaio só com o cantor e toque a melodia junto com ele para encontrar as notas fora do lugar. Utilize um instrumento preciso, como violão ou piano, e um afinador digital para conferir as notas. Cante junto com o músico algumas passagens e torne essa atividade mais confortável. Caso o cantor não alcance graves ou agudos específicos, este é o momento de propor um pequeno acerto na melodia. As vezes os cantores podem ser resistentes para perceber a desafinação. Nesse caso, mostre o problema no afinador eletrônico, porém, não seja rude. Um cantor desconfortável não vai cantar melhor.


"Marque seções de ensaio só com o cantor e toque a melodia junto com ele para encontrar as notas fora do lugar"



CORRIGINDO A DICÇÃO

Outro aspecto muitíssimo importante é o entendimento da palavra cantada. Não é raro em músicas do repertório nacional não ser possível entender algumas palavras da canção. Se isso é um problema na nossa língua nativa, imagine em línguas estrangeiras. Sendo assim, depois de todo cuidado com a respiração e afinação, temos que ajudar o músico a se expressar melhor no microfone. Temos que ter em mente que a pessoa que canta ouve parte do som a partir da sua própria caixa de ressonância facial. Sendo assim, provavelmente ela vai ouvir a própria voz de maneira diferente da captada a 20 cm de distância do microfone.


É importante que o músico articule bem as palavras, de modo que o som captado e gravado seja realmente claro, independentemente se ele parece claro para um ouvinte a um ou dois metros de distância. Isso porque o som gravado e o som acústico podem ser diferentes dependendo dos equipamentos em uso. Nessa etapa de pré-produção devemos trabalhar com o cantor a redução dos "s" proeminentes, os quais aumentam muito a sibilância do sinal captado. Também é importantíssimo trabalharmos a redução das consoantes "p" e "b" para que não seja tão necessário o uso de windscreen ou pop filter no momento do posicionamento dos microfones para a voz. Ou seja, tudo que soa muito excessivo no microfone deve, inicialmente, ser resolvido com um bom trabalho de treinamento vocal, e, depois, caso o problema ainda persista, devemos lançar mão de recursos como de-esser, low cut ou pop filter.

JUNTANDO TUDO COM EXPRESSIVIDADE

Depois de todo esse trabalho, sempre procurando que o cantor atinja o máximo de desempenho, confiança e precisão, devemos dar expressão para o contorno dinâmico do canto. Essa é outra etapa importantíssima para evitar problemas com compressores de áudio. A expressividade do cantor pode ser atingida com recursos sonoros timbrísticos, mas também com recursos de variação dinâmica. Nesse caso, sempre que existirem variações entre uma voz sussurrada e uma voz poderosa, o produtor tem que ter uma atenção especial com o cantor.

Muitos cantores já sabem controlar a potência sonora utilizando o "efeito proximidade" do microfone. Isso consiste em aproximar-se do microfone em passagem de pouco volume e afastar-se em passagens muito potentes. Porém, nem todos cantores tem o domínio dessa técnica e cobrar isso no momento da gravação pode se tornar um grande desastre. Então, cabe ao produtor ensinar essa técnica de controle dinâmico e treinar o cantor insistentemente para que ele consiga unir isso tudo com consciência e organicidade.


"Com o cantor seguro dos aspectos fundamentais da sua música, fica muito mais fácil extrair o melhor desempenho dos equipamentos"



Depois de todo esse trabalho, podemos pensar na escolha dos microfones, equipamentos ou ainda o posicionamento final. Com o cantor seguro dos aspectos fundamentais da sua música, fica muito mais fácil extrair o melhor desempenho dos equipamentos. Não tenho dúvida de que um bom trabalho de preparação vai permitir atingir uma gravação vocal poderosa, clara e expressiva. Além do mais, isso vai poupar horas de correções, compressões e equalizações, muitas vezes ineficazes com problemas como os descritos anteriormente. Sempre penso que os músicos não deveriam se preocupar com tipos de equipamentos, cabos ou microfones. Melhor dizendo, que os fatores técnicos do áudio deveriam ser discutidos para melhorar o que já está bom, e não para corrigir o que está ruim. Porém, o domínio e desenvoltura com os equipamentos facilita muito o andamento da gravação.

Assim, na próxima coluna tratarei dos assuntos relacionados aos tipos de microfones para captação de voz, posicionamento e o uso de recursos como compressores e equalizadores. Até lá!
 
Conteúdo aberto a todos os leitores.