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Revista Luz & Cena
Entrevista
Ed Lincoln
O Órgão Espetacular
Lígia Diniz e Sólon do Valle
Publicado em 24/02/2015 - 00h00

Fazer uma entrevista no estilo pergunta e resposta com Ed Lincoln é praticamente impossível. Na verdade, acho que paramos na primeira questão: "como você entrou na música?". Isso porque essa foi a deixa para o músico contar sua carreira e algumas historinhas deliciosas dos tempos em que estavam na moda os bares e boates de Ipanema e Tom Jobim fazia bicos para comprar o apartamento na Nascimento Silva. Ed Lincoln foi um dos primeiros a fazer sucesso com um órgão Hammond no Brasil, mas começou no piano e passou até mesmo pelo contrabaixo. Hoje só quer saber de usar tudo que o computador pode oferecer para fazer música. Pai dos engenheiros de som Marcelo e Marcos Sabóia, ele recebeu a M&T no seu estúdio na Lapa, onde passa a maior parte do seu tempo. Confira.

DE PIJAMA, NO PIANO
O primeiro contato de Ed Lincoln com a música foi através de sua mãe e de sua irmã mais velha, que tocavam piano. Um dia, foi assistir ao filme Rapsódia em Azul, sobre a vida do compositor George Gershwin, e ficou no cinema até acabarem-se as sessões. No dia seguinte, Ed - que ainda era Eduardo - vestiu seu pijama imitando Gershwin, correu para o piano da sala de estar, "onde só se entrava com autorização" e ficou ali fingindo que estava lendo as partituras e tocando. Vendo o gosto de Eduardo pela coisa, sua irmã resolveu ensinar alguma coisa a ele. Foi assim que Ed começou, tocando de ouvido. O próximo passo foi tocar no rádio, ainda em Fortaleza (CE), onde nasceu.
Na Rádio Iracema, montou um trio com Paulo de Tarso na bateria e Dandão no contrabaixo, enquanto ficava no piano. A mudança para o Rio de Janeiro não teve a ver com a música: o jovem músico veio estudar arquitetura e trabalhar no Ministério do Trabalho.
No Rio, Ed não tinha nenhum contato na música até que o antigo amigo, Célio, do Ceará, ligou para ele convidando a acompanhá-lo numa apresentação na Rádio Roquete Pinto. Estamos falando do início da década de 50. Foi lá na rádio que Ed encontrou pela primeira vez o pianista Luiz Eça. Foi paixão à primeira vista. "Quando vi o Luizinho tocando, pensei 'Deus me livre, o cara sabe tudo!'". Nessa época, Ed conheceu também Vandré, Juquinha da bateria, o pianista Sérgio Ricardo ("que se chamava João Mansur, naquela época") e Johnny Alf. O diretor do programa, Valdemar Henriques, chamou então Ed Lincoln para fazer uma apresentação sozinho. "Toquei Smoke Gets in Your Eyes", lembra.
A passagem do rádio para as apresentações na noite foi provocada por Luiz Eça, que estava tocando no Plaza Bar, em Copacabana, e chamou Lincoln para fazer parte de um trio que estava montando. Único detalhe: Ed seria o contrabaixista da banda. "Eu nunca tinha colocado as mãos em um contrabaixo na vida!", diz. Luiz Eça rapidamente interveio: "Não tem problema. Você toca piano, em que são seis ou oito notas de uma vez, não vai tocar uma nota só? Só se for burro!".
Depois de assinado o contrato, foram Ed Lincoln e Luiz Eça procurar um contrabaixo para comprar, de noite, na Rua do Riachuelo, zona central do Rio. Depois de comprado o instrumento, foram ensaiar.
Na mesma época, Valdemar Henriques havia chamado Ed para participar de uma peça, musicada por Radamés Gnatalli, A Pensão da Viúva Costa, que seria encenada em Ipanema. Foram convidados para tocar, além de Lincoln, Luiz Eça e Juquinha na bateria. "Como eu não sabia ler música, ficava ouvindo e treinando. Ensaiamos tanto que chegava a sair sangue dos dedos!", lembra.

DE PARA-QUEDAS NO ORGÃO
Depois se seguiu a estréia no Plaza Bar e Lincoln foi ficando mais confiante. "Foi um sucesso", diz. O esquema do show era a apresentação do trio, composto por Lincoln, Eça e Paulo Ney na guitarra, seguindo-se Lincoln sozinho ao piano, depois Paulo em voz e guitarra, e novamente o trio. O grupo gravou até um disco de 10 polegadas, chamado Uma Noite no Plaza.
Mais tarde, Luiz Eça ganhou uma bolsa para estudar em Viena, na Áustria, e o dono pediu que Lincoln montasse um trio para continuar tocando no Plaza. Atrás do bar, funcionava uma boate, animada por uma pequena orquestra conduzida por Steve Bernard, em que tocava um guitarrista que já havia chamado a atenção de Ed. Como Paulo Ney havia saído para tocar em outro grupo, Lincoln pensou logo em chamar o guitarrista da orquestra.
Assim nasceu o novo trio, que tocou no Plaza por mais dois anos, com Luiz Marinho no contrabaixo e ninguém menos que Baden Powell na guitarra. Algumas modificações foram acontecendo durante esse tempo. O dono do Plaza pediu para chamarem alguém para cantar e foi sugerido o nome de "uma garotinha que canta muito bem" e que se apresentava na época na Rádio Mayrink Veiga. Era Claudete Soares. "Foi mais um sucesso. E seguiram-se outros com Silvinha Telles".

A estreia de Ed Lincoln do órgão foi consagrada pela Manchete de Stanislaw Ponte Preta: "Lincoln, de ponta a ponta o melhor"digite aqui a citação


Na época, Ed Lincoln também era amigo de João Gilberto, que não entrava de jeito nenhum no Plaza. "Ele me chamava lá de fora", lembra Ed, "no intervalo eu saía com ele, com o Vandré e com o Tom Jobim". Nessa época, a boate Plaza estava em obras e Ed tocava no saguão do hotel, onde moravam Antônio Maria e Ari Barroso. "Uma vez, eu pedi ao Tom para me cobrir e ele aceitou porque estava precisando de dinheiro para pagar as prestações do apartamento na Nascimento Silva. Ele tocou algumas vezes, mas diziam que ele tocava meio esquisito".
O dono do Plaza resolveu então fazer um som mais dançante. "Foi aí que começou a minha prostituição musical", brinca Ed. Com a boate Plaza em reforma, Baden foi tocar em outros lugares e Ed Lincoln resolveu montar um novo grupo. Foram recrutados Carlinhos, irmão de Bebeto (do Tamba Trio), para a guitarra e Hugo para a bateria.
O grande sucesso na época era um bar chamado Drink, onde tocava o Djalma Ferreira. Em frente a ele, havia o Sacha's e atrás o Arpège. Com Djalma, tocava Sérgio Ricardo, que chamou um dia Ed Lincoln substituí-lo um sábado no piano do Drink. "O Djalma Ferreira era um músico impressionante, que lançou o cantor Miltinho, entre outros". Segundo Lincoln, dois pianistas tocavam meia hora cada um e depois Djalma entrava, sempre acompanhado por seu pianista titular, que era Sérgio Ricardo. "Quando dava meia-noite, apagavam-se as luzes, ele se sentava ao órgão, e ele era iluminado por umas luzes vermelhas... parecia um demônio! Eu sentei lá, meio enganando, tentando esconder a cara, mas ele já tinha sentido que tinha alguma coisa diferente. Depois de um tempo, ele olhou para mim e começou a rir. Na mesma noite, ele me pediu para assumir o posto."
Ed Lincoln largou então o Plaza e ficou no super badalado Drink, onde gravou dois discos com Djalma Ferreira. Nessa época, no final dos anos 50, faziam parte do conjunto Waltel Blanco, no contrabaixo, Edson Machado na bateria, Miltinho no pandeiro e na voz, e mais as cantoras.


Numa sexta-feira, Lincoln foi chamado às pressas para o Drink: Djalma Ferreira havia levado um tiro e Ed deveria substituí-lo no órgão naquela noite. "Eu disse 'vocês estão loucos', eu nunca me sentei ao órgão, não sei nem ligar!". Chegando lá, encontrou a banda toda preparada e a casa cheia. "Eu tremia de nervoso. Quem me salvou foi o Lucas que trabalhava no bar e meu umas truacas", lembra, "quando deu meia-noite e acenderam aquelas luzes do demônio em cima de mim, eu pensei 'agora sou eu, não tem jeito' e fui em frente. No final, as pessoas aplaudiram entusiasmadas, mas não era por mim, era contra o Djalma, que sempre foi um figura meio antipática".
Por acaso, naquele dia, quem estava na platéia era Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que fazia o caderno de lazer no jornal Última Hora. Na segunda-feira seguinte, lia-se a manchete "Lincoln, de ponta a ponta o melhor", inspirada no slogan dos cigarros Lincoln. Este foi o pontapé da carreira de Ed Lincoln como organista. Djalma Ferreira acabou vendendo o Drink para Renato Alencar, que tinha como braço direito seu irmão o futuro governador Marcelo Alencar. Lincoln começou a fazer vários bailes e juntou dinheiro para comprar um instrumento próprio. A estréia do grande órgão foi no clube Monte Líbano, na zona sul do Rio de Janeiro. Dos bailes para os discos solo foi um pulo.

LPS, GRAVADORAS E PIRATARIA
A primeira gravação do grupo de Ed Lincoln, pela primeira vez no órgão, foi feita em 1960: o LP Ao Seu Ouvido foi gravado na Rádio Nacional, para o selo Helium, e garantiu os meios para o recém-casado Ed mobiliar seu apartamento. Participaram do disco Neco na guitarra, Ari Carvalhais no contrabaixo, Waltel Blanco e Edson Machado. A única exigência da gravadora é que fizesse parte do repertório uma música chamada "Sedução", porque era o nome de uma revista feminina que emprestaria o fotolito para a capa do disco. Além disso, a música deveria vir co-assinada por Lincoln e pelo diretor da revista! O conjunto foi uma verdadeira escola de músicos: por ali passaram, "sempre por acaso", entre outros, Waldir Machado, e Pedrinho Rodrigues.
Em 1963, Lincoln sofreu um grave acidente de carro. "Estava na Vieira Souto, em frente ao Country Clube, e com o impacto da batida saí voando pela janela e quebrei o lampião do poste", conta. Depois de quase um ano internado, Ed saiu e gravou o LP A Volta, em 1964. Uma curiosidade: este disco é citado por Matt Groenning, criador dos Simpsons, entre as 100 melhores coisas do mundo. A Volta ocupa a posição 29, na frente do organista de jazz "Big" John Patton.

Os discos da fase de ouro permanecem inéditos em CD. A Musidisc detém os direitos das gravações, mas não faz nada com elas


Todos os discos dessa fase, até 1966 (confira a discografia no box ao lado), foram lançados pela gravadora Musidisc, que detém os direitos das gravações até hoje, mas não se decidiu por relançar nada. "Eles não me dão os direitos e não fazem nada com as músicas. Está tudo parado", reclama Lincoln.
Ele acredita que isso acaba promovendo a pirataria e cita o exemplo da gravação de Cochise, do LP Ed Lincoln (1966), "super pirateada". Do mesmo disco, a música É o Cide foi parar até em um disco de funk da Furacão 2000. Sem crédito, claro. As brigas na justiça não deram em nada. Ed conta ainda que gravadoras inglesas já se mostraram interessadas em lançar compilações de músicas desta fase, mas a Musidisc não autorizou o lançamento.
Sobre a volta aos antigos estilos, como o samba-rock e o samba-soul, feitos por Lincoln e tantos outros, Ed acredita que é muito natural. "Todo mundo sempre gosta do velho, sempre busca o tal do vintage", afirma.
E por falar em velharias... Ed se lembra de uma história engraçada: ainda nos anos 50, foi chamado para participar de um filme da época das chanchadas, De Vento em Popa. Lá conheceu o diretor Carlos Manga e foi chamado para fazer outros. O curioso é que não era só ele. "Um dia ainda vou fazer uma pesquisa sobre a participação dos músicos nas chanchadas: aparecia o Baden tocando trumpete ou acordeon, o Vandré tocando trumpete e por aí vai: eu ia levando meus amigos para ganhar uma graninha", diverte-se.
Ed Lincoln vendeu seu Hammond há alguns anos. "Ocupava muito espaço", diz. Hoje só quer saber dos plug-ins que reproduzem fielmente o som dos antigos instrumentos. Só tem quebrado a cabeça para achar algum software que acompanhe os bends do saxofone.
O computador aliás é o parceiro freqüente nos trabalhos atuais do músico. E diversão também: Lincoln adora desenhar capas para seus discos virtuais. O namoro de Ed Lincoln com a música eletrônica vem de longe. Ainda nos anos 50, ele comprou uma bateria eletrônica mecânica, que gerava o som através de discos com contatos elétricos. O primeiro contato com um computador mesmo foi no final da década de 80, com o Commodore 64. "Fiquei alucinado. Achava que estava fazendo algo legal, mas saía uma porcaria!", lembra.
Hoje em dia, a coisa muda de figura. Ed Lincoln acha que é imprescindível para um músico saber usar o computador para fazer música. Ed conta que nos primórdios do computador, seu filho Marcos Sabóia vivia reclamando que queria músicos de verdade e hoje é o primeiro a falar de Pro Tools. "Se uma pessoa não acompanha a tecnologia, vai ficar para trás. Porque nada mais vai voltar a ser como era antes da era digital", diz ele. Sempre moderno.



DISCOGRAFIA BÁSICA
Uma Noite no Plaza (1955) - Luiz Eça, Paulo Ney, Eduardo Lincoln
Noite e Dia (1956) - Eduardo Lincoln e Luiz Bonfá
Ao Teu Ouvido (1960) - Helium
Órgão Espetacular (1960) - Musidisc
Ed Lincoln (1962) - Musidisc
Ed Lincoln 2 (1962) - Musidisc
Ed Lincoln (1963) - Musidisc
A Volta (1964) - Musidisc
Ed Lincoln (1966) - Musidisc
Ed Lincoln (1967) - Musidisc
Ed Lincoln (1968) - Savoya Discos
De Savoya Combo (1969) - Savoya Discos
De Savoya (1972) - Polydor
Novo Toque (1988) - Elenco

 
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