Um profissional que era unanimidade por unir, na medida certa, sensibilidade e conhecimento, Guilherme Reis partiu cedo demais, em 2011, mas sempre será lembrado por quem foi e pelo que fez. E para visitarmos a vida e a obra de um profissional do áudio que fez história, nada melhor do que dar voz a pessoas que conviveram com ele e testemunharam muitos de seus passos. É o que faz a seção Áudio no Brasil desta edição da AM&T.
Depois de se formar em engenharia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1978, Guilherme Reis deu início à sua carreira no áudio nos estúdios da RCA e da Odeon. Já consagrado e com um currículo repleto de trabalhos com artistas como Elis Regina, Djavan e Lô Borges, Guilherme foi chamado por Hugo Lacerda, no início dos anos 1990, para trabalhar em seu estúdio, o Discover, no Rio. Lá, também teria créditos, como engenheiro, mixador e editor digital, em discos de nomes como Legião Urbana, Renato Russo, Gal Costa, João Bosco, Tom Jobim, Ivan Lins, Caetano Veloso, O Rappa, Marina Lima, Geraldo Azevedo, Skank, Ed Motta, Guilherme Arantes, Fagner e Leila Pinheiro.
"Quando o Discover estava prestes a ser inaugurado, convidei o engenheiro Flavio Senna para trabalhar comigo. Ele declinou, pois havia acabado de assinar um contrato com o Roupa Nova, mas me recomendou 'um amigo muito competente, da época de EMI', que era o Guilherme Reis", recorda Hugo Lacerda. Naquele momento, Reis estava fazendo o PA dos Engenheiros do Hawaii, e após aceitar a oferta de Lacerda, seria fundamental no desbravamento da novidade que se apresentava naquele momento no universo do áudio: o Pro Tools. Tornou-se um pioneiro.
DESBRAVANDO O PRO TOOLS
"Eu estava em Nova York quando vi a brochura da DigiDesign falando sobre o futuro lançamento de gravação digital... Nem lá nos EUA conheciam o Pro Tools. Mas pensei, 'se pegar, vai dar samba'", lembra Lacerda. "Guilherme usava o conhecimento dele como técnico para aquela tecnologia nova, que ele nunca tinha visto. Aos poucos, foi entendendo toda a sistemática do Pro Tools, que, em 1992, era algo ainda embrionário, com muitos bugs, e sem internet para nos tirar dúvidas. O Guilherme era uma pessoa muito determinada, e superou essa fase inicial com maestria. Era obstinado naquilo de querer dominar, conhecer", destacou Lacerda, que enxergava Reis como um importante elo entre o músico e a tecnologia. "O Guilherme tinha a sensibilidade de entender o que o músico queria e sabia agradá-lo usando o conhecimento tecnológico. Às vezes o engenheiro é muito inteligente e profissional, mas não entende o cliente. O Guilherme entendia."
Após o ingresso de Guilherme no Discover, um jovem que havia acabado de chegar dos EUA também foi contratado por Lacerda. Seu nome, Fábio Henriques, um engenheiro da UFRJ que, segundo Hugo, "caiu como uma luva no estúdio".
"Conheci Guilherme quando o Discover estava acabando de ser instalado. Ele era um profissional consagrado que teve a coragem de ir para um estúdio que fisicamente era de médio porte, e tinha como atrativo uma tecnologia completamente desconhecida. Com sua competência, acabou levando grandes artistas para lá, e os resultados sonoros eram do padrão de estúdios muito maiores. Ele era, ao mesmo tempo, apaixonado, corajoso e um visionário. Estava muito à frente do seu tempo", observa Fábio. "Não só foi provavelmente o primeiro profissional a usar o Pro Tools no Brasil, como também um dos que mais investiu e acreditou na tecnologia digital. Fazia discos inteiros dentro do computador, e a sonoridade que obtinha sempre foi indiscutivelmente perfeita", acrescenta Henriques.
HUMANIDADE NO TRABALHO
O colaborador da AM&T lembra ainda que Reis sempre colocava o aspecto humano à frente de qualquer outro, e seus clientes eram, antes de mais nada, seus amigos. "Assim ele se tornou unanimidade, não só por sua elevada capacidade técnica, mas também por sua excepcional sensibilidade artística. Ele nos transmitia ensinamentos valiosíssimos, e também um respeito profundo pela música e pela arte, que deveriam ser sempre o objetivo final, à frente da técnica." Fábio recorda que Guilherme fazia questão de estar sempre antenado a tudo o que havia de novidades no universo do áudio, e sua principal diversão era aprender.
Entre os principais trabalhos de Reis, Henriques destaca um que, para ele, foi bastante significativo - Catavento e Girassol, de Leila Pinheiro, que é bem voltado à sonoridade acústica e foi todo feito no então recém-lançado Pro Tools 24 bits. "Só o Gui teria coragem para fazer isso em 1996", disse Fábio. Já Hugo ressalta que não retiraria um trabalho de Guilherme da lista dos melhores, mas lembra com carinho especial do engenheiro fazendo experimentações durante uma gravação de João Bosco. "Conforme ele ia adquirindo experiência e confiança com o Pro Tools, ele começava a 'brincar', a fazer coisas novas. Numa madrugada, ele captou sons de bichos da noite para colocar em determinada faixa, e era fácil, pois era só abrir um track. O João ficou maravilhado."
PARCEIRO INSUBSTITUÍVEL
A já citada Leila Pinheiro sente muitas saudades "do amigo, do parceiro incansável" que coproduziu com ela o também já comentado álbum Catavento e Girassol, e destaca aprendizados específicos e momentos eternos.
"Ele me ensinou a ouvir, a valorizar a voz-guia, a emoção primeira, desarmada, solta como a gargalhada dele. Me expulsou do Discover para que eu me desapegasse da mix do Catavento e parasse de ouvir o que não existia...", diz ela, que naquele dia foi embora, virou à esquerda e deu 22 passos até chegar em casa. "Éramos vizinhos. Que dádiva! Dançávamos juntos no estúdio ouvindo o que gravávamos... Esvaziamos copos infindáveis de cerveja em papos intermináveis... Era ele quem me dizia que mic usar em shows, e acabou me viciando num C12. Respondia com paciência às minhas muitas perguntas técnicas, adorava me ensinar, dava uma grande atenção ao meu interesse nessa área, e isso fez e faz uma enorme diferença no som do meu trabalho a partir dali.

Gravamos juntos e ele coproduziu também comigo em 98 o CD Na Ponta da Língua. Deu ideias ótimas, ficou novamente sozinho na técnica enquanto eu colocava a voz no disco. Confiança absoluta, cumplicidade máxima! Anos depois saiu um pouco do estúdio, mas vivia por ali e eu sempre subia pra dar um beijo nele. Já estava trabalhando no som dos DVDs [Guilherme foi convocado pelo amigo Marcelo Azevedo para assumir a gerência de áudio do Mega, em São Paulo, onde participou de uma reestruturação que deu uma guinada digital no estúdio, abrangendo os segmentos de música e cinema]. Do corredor externo do Discover ele conversava comigo - eu na janela do meu apartamento. Ninguém ocupa mais esse espaço na minha vida. Sinto uma falta muito doída do Guilherme, supervivo dentro de mim, com aquele sorriso lindo e largo dando gargalhadas altas. Acho que ele está assim no peito de todos com quem conviveu e trabalhou, e isso é maravilhoso", disse a cantora.
DIREITOS E DNA
Outro depoimento emocionado vem de Nivaldo Duarte, técnico de som histórico que foi o personagem central da Áudio no Brasil da AM&T 269. Ele afirma que se sente muito à vontade para falar de Guilherme Reis, mas não sem ser tomado por uma onda de emoção e saudades.
"Foram muitos anos que convivemos como colegas de trabalho e amigos de coração. Era gostoso trabalhar na Odeon, e a equipe, que tinha, além do Gui, Franklin Garrido, Sérgio Bitencourt, Mayrton Bahia, Renato Luiz e outros que não lembro no momento, era muito boa", lembra Nivaldo, apontando em seguida para outro lado da atuação profissional de Guilherme. "Assim que chegou, Gui começou a nos orientar sobre nossos direitos trabalhistas. Tratou de arregimentar colegas de outras empresas. Em uma reunião em sua casa de Teresópolis, foi discutido o embrião de uma associação de trabalhadores em estúdios de gravação do Rio de Janeiro. Foi o passo inicial para a criação do nosso sindicato. O Gui conseguiu também junto à gravadora melhores ganhos nos cálculos de horas extras para todos nós. Era assim Guilherme: brilhante nos botões, mas sem deixar de olhar com amor e carinho para quem o cercava", destaca Nivaldo, que, recentemente, ao escutar e gostar de uma produção ("a mixagem era excelente, assim como a sonoridade dos instrumentos e o arranjo"), perguntou a seu amigo Gabriel Arbex de quem era.
"Ele me disse que era uma produção do Lucas Reis, e talvez também seus os arranjos. 'Lucas Reis? O Luquinha do Gui?' Emocionei-me, e pensei: filho de bom mixador como Guilherme Reis tem que ser bom arranjador. Guilherme foi perfeito. Como profissional, como amigo, como homem. Só falhou num detalhe: não tinha o direito de partir tão cedo, pois ele é um desses caras que fazem falta, muita falta."