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Revista Luz & Cena
Mixagem
Otimizando Sua Mixagem (Parte 5)
Volumes
Fábio Henriques
Publicado em 08/08/2014 - 00h00
Prosseguindo em nosso processo de utilizar técnicas para otimizar o trabalho de mixagem, hoje vamos nos concentrar no aspecto mais importante e mais difícil quando se trabalha em ambiente digital: os volumes.

DISTORÇÃO E RUÍDO

Para começar, precisamos definir aqui alguns conceitos. Para o caso em que estaremos analisando aqui, admitiremos algumas coisas. Primeiro, quando definimos algo como um "gravador", admitimos que sua função é simplesmente registrar uma informação. Ele deve fazer isso da maneira mais transparente possível, para que este registro não interfira no conteúdo da informação.

O fato inevitável no mundo real é que por mais que o gravador seja bem construído, sempre haverá uma parcela da informação que acaba sendo modificada pelo processo (algo que a própria Segunda Lei da Termodinâmica implica). Alguns gravadores modificam bem pouco, outros modificam pesadamente.

Para nossos fins aqui, definiremos "distorção" como a alteração na forma de onda original provocada pelo processo de gravação (isso serve para transmissão também). E a diferença entre o que saiu e o que entrou chamaremos "ruído". Veremos que este ruído tem uma parcela inerente ao processo e outra que se deve ao próprio equipamento e à mídia de armazenamento.

Vale a pena também definirmos o que será pra nós a "saturação". Considera-se que um sinal está saturado quando o equipamento não consegue gerar um aumento na amplitude da saída quando ocorre um aumento na amplitude da entrada. Isto provoca também uma distorção na forma de onda.

Definidos os termos, comecemos.

O PRINCÍPIO BÁSICO

Existe um fator fundamental em áudio, mesmo o analógico, que permeia todo o processo de gravação desde seu nascimento, em 1876. A gente precisa gravar alto. O mais alto possível, sem que isso prejudique a qualidade, é claro.

No áudio analógico, a característica mais importante neste aspecto é que as mídias em que registramos a informação produzem ruído por elas mesmas. Pegue uma fita analógica que nunca tenha sido usada, direto da embalagem, ponha em um gravador e aperte o Play. Instantaneamente você vai ouvir chiado. Faz parte da natureza da mídia (em termos técnicos, o posicionamento randômico dos domínios magnéticos na superfície da fita). Isso vale para todo processo analógico de gravação e transmissão. Você coloca de um lado a informação que deseja e do outro lado a recebe mais o ruído inerente à própria mídia (além do inserido pelo equipamento).

Para mantermos o foco, não vou nem lembrar que as não linearidades das mídias e dos equipamentos/processos provocam, além disso, alterações na própria informação em si (os defensores do áudio analógico admitem que estas modificações "melhoram" o som), modificando as características do sinal original, além de acrescentar ruído. Por isso, então, é conveniente se gravar bem alto, para que a informação útil fique bem acima do ruído da mídia/equipamento (ruído de fundo), mascarando-o.

Os processos digitais de transmissão e gravação foram criados para acabar com essa dependência das particularidades da mídia. Como a coisa toda se processa através de codificação da informação e não da gravação/informação direta, o "chiado" da mídia deixa de importar. Isso é assim desde o telégrafo, por exemplo, que ao codificar a informação a ser transmitida via pontos e traços, diminuiu absurdamente a influência da rede de transmissão na qualidade. A TV digital é um exemplo recente e nítido do que a codificação, no caso, digital, pode fazer em termos de independência das mídias. Se há qualidade de transmissão suficiente, não há chuviscos e/ou fantasmas, e a nitidez é impressionante. Ou há transmissão boa, ou simplesmente não há.

Mesmo nos processos digitais, há vantagem em se gravar o mais alto possível, não por distanciamento do ruído de fundo, mas por uma outra causa. Em áudio digital, a cada instante de amostragem é feita uma medida da amplitude do sinal, enquadrando-o dentro de uma "grade" de valores possíveis. A precisão desta medida está diretamente relacionada ao espaçamento desta grade. Quanto mais bits, mais precisamente a medida será feita, e, consequentemente, quando se voltar ao analógico, mais fidelidade teremos em relação à informação original. Quanto maior a amplitude, mais bits estaremos usando para fazer as medidas, e, assim, quanto mais alta a amplitude de um sinal, mais precisa é sua codificação. A qualidade então depende da amplitude. Sinais pouco intensos são menos precisos.

Ao mesmo tempo, como os processos digitais não são destrutivos (sempre existe um "undo"), a liberdade que temos de "mexer" na informação é enorme. Há plug-ins dos mais diversos, capazes de processar os sinais de maneira muito poderosa, já que, no final, é tudo matemática mesmo. Juntando estas duas coisas, o aumento da qualidade para volumes altos e o poder de processamento, temos o pano de fundo perfeito para esta característica tão marcante no mundo digital de gravação: a busca pelo volume mais alto o tempo todo.

GUERRA DE VOLUMES

Não se pode negar que a dinâmica faz parte da música. Principalmente em música clássica, os trechos executados suavemente (piano) e vigorosamente (forte) fazem parte fundamental da expressão musical. Só que nós temos que tentar harmonizar estas importantes diferenças de volume com o fato de que os gravadores gostam e se beneficiam quando o volume é mais alto.


Existe uma crença de que antigamente os engenheiros se preocupavam em manter esta dinâmica. Até onde sei, nossa atitude era de briga constante. O chiado de fita nunca foi "romântico" - foi sempre um problemão com o qual tínhamos que conviver. Qualquer um que ouça música clássica em vinil ou fita irá perceber que nos momentos em pianíssimo a gente tende a ouvir mais a mídia que a música. Não fosse assim, uma máquina como a Sony 3324 (lançada por volta de 1982) - digital, 16 bits, em fita, 24 canais, US$ 125.000 - nunca teria feito o sucesso que fez. Durante um bom tempo as fitas DAT (Digital Audio Tape), de dois canais, eram o destino de masters na busca de se fugir da chiadeira da fita.

E mesmo na música pop a coisa às vezes complicava. Ouça a versão original em vinil de The Talking Drum, do LP Larks' Tongues in Aspic (1973), do King Crimson - que é basicamente um fade in de sete minutos, e observe como em mais da metade da música a gente ouve basicamente o vinil "falando". Ou, por exemplo, o álbum Ummagumma, do Pink Floyd (1969), com vários trechos em pianíssimo que acabam se transformando em mero ruído de fundo em sistemas de som típicos (sistemas megacaros de audiófilos não entram na discussão aqui, pois, afinal, estamos falando de música "popular").


Pois bem, no mínimo podemos admitir que o lado técnico se beneficia se dispusermos de ferramentas que permitam se manter o volume alto dentro dos limites do bom senso. O problema será definir estes limites. Não vamos entrar aqui no assunto do excesso de volume nas masters, pois fugiríamos do nosso escopo - embora possamos voltar a ele futuramente. Por ora, foquemos nas vantagens que um controle maior do volume pode trazer.

AS FERRAMENTAS

Assim, podemos admitir que mesmo no mundo pré-digital todo mundo ficaria feliz se fosse possível aumentar o volume geral sem o risco de se saturar a saída. Em áudio digital, o sentimento é o mesmo, pois se, por um lado, maior volume resulta em maior qualidade, a saturação não é nada sutil, gerando distorção apreciável. Muito da habilidade de um engenheiro dos tempos do analógico estava em conseguir um ajuste no gravador que permitisse uma certa ousadia no volume, aproveitando a pequena distorção gerada pelo processo como um fator de coloração intencional dos timbres. Mas, no geral, a gente procurava ser mais conservador.

Já no digital, começaram a aparecer ferramentas - principalmente os limiters preemptivos - que passaram a permitir que empurrássemos mais o volume sem o risco de saturar. Com isso, começou a ser possível se obter maior volume médio nas mixes, e o povo começou a gostar. É sabido que maior volume geralmente provoca uma sensação mais empolgante no ouvinte. Na música clássica, o compositor "brinca" com isso através do contraste, pois os momentos mais suaves servem de contraponto e preparação para os momentos fortes. Só que a música pop tem apenas três minutos e pouco pra passar sua mensagem, o que faz toda a diferença. Assim, meus amigos, mesmo com todo esse papo de que deve se evitar a guerra desenfreada de volumes, há um lado bom em se buscar um maior nível médio, desde que exageros sejam evitados.



O DESAFIO

Mixando hoje em dia, o grande desafio é se conseguir um volume o mais alto possível para a mixagem sem que se comprometa excessivamente a dinâmica, principalmente se estamos trabalhando com música pop. É preciso certa atenção à exigência do estilo, pois trabalhos de jazz e alguns estilos de MPB normalmente não são exigentes quanto a volumes. Clássicos, então, nem se fala. O modo como a gente vai conseguir dominar a coisa é através do uso esperto de algumas ferramentas.

CHANGE GAIN

Antes de se pensar em usar plug-ins, o que veremos no nosso próximo encontro, quando falarmos de compressores e limiters, existem procedimentos que nos ajudarão muito a conseguir consistência de volumes. O primeiro deles é o change gain.


Nos tempos da fita analógica era importante se mandar o som para o gravador já o mais perto possível do desejado. Isto porque uma vez registrado na fita, era difícil se processar este áudio novamente. Por exemplo, se depois do sinal gravado a gente descobria que ele precisava de mais agudos, o resultado era que a gente acabava aumentando o chiado que vinha junto. Isso valia para compressores também, para que o volume de gravação ficasse alto (e longe do ruído de fundo) por mais tempo. Assim, equalizar e comprimir ao gravar era o mais comum.

Hoje em dia, posso dizer com toda tranquilidade que gravando em 24 bits não existe nenhuma necessidade de se gravar processando. Não é proibido, obviamente, mas também não é necessário. Isso pode resultar em variações extremas de dinâmica em um track, com trechos muito baixos e muito altos. É claro que isto pode nos atrapalhar na hora de controlar os volumes na mixagem.

Todo programa de mixagem hoje em dia possui uma função que nos permite alterar o volume de um trecho de um arquivo de áudio. Chamaremos aqui essa função com o nome genérico de change gain. Vejamos como usá-lo e qual é a sua enorme importância. O que recomendo que se faça é algo mais visual do que auditivo: uma boa olhada no desenho do track. Se a gente percebe que certos trechos estão muito baixos, usamos o change gain para uniformizá-los. Isso vai economizar tremendamente o tempo de mixagem.

É preciso, porém, um certo cuidado para se evitar o exagero. A ideia não é "normalizar" o áudio, chapando tudo em 0 dBFS. O que vamos procurar fazer é uniformizar o comportamento do volume ao longo do track, mantendo um certo "espaço de manobra" (headroom) em relação ao topo da escala. As figuras ajudam a esclarecer.


Repare, no exemplo, que embora eu tenha corrigido as variações de dinâmica, fiz isso em termos gerais, resistindo à tentação de abaixar os ataques (os picos curtos). É importante mantê-los nesta fase, porque são muito importantes para a caracterização do timbre. Numa etapa posterior, os limiters se encarregarão de aparar estes excessos. E, também, a não ser que haja variações extremas no meio de uma frase - por causa de uma correção ou edição, por exemplo -, deve-se procurar trabalhar em frases inteiras. Na dúvida, confira ouvindo se o change gain é realmente útil no meio de uma frase.


Esse tipo de procedimento praticamente dispensa o uso da tão endeusada (atualmente) e mal compreendida compressão paralela. Change gain é menos romântico, mas funciona lindamente e economiza tempo. E uma vez que os áudios estejam mais ou menos uniformes, serão necessárias muito menos automações de volume. Os compressores que eventualmente usarmos precisarão de ajustes muito menos radicais, e, consequentemente, serão menos audíveis.

Em resumo, se conseguirmos modernizar nosso pensamento, nos libertando das limitações que os processos analógicos impunham e que hoje em dia simplesmente inexistem, ganharemos tempo, trabalharemos menos e teremos um melhor resultado.

Em nosso próximo encontro, então, comprimiremos.

Fábio Henriques é engenheiro eletrônico e de gravação e autor dos Guias de Mixagem 1,2 e 3, lançados pela editora Música & Tecnologia. É responsável pelos produtos da gravadora canção Nova, onde atua como engenheiro de gravação e mixagem e produtor musical.
 
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