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Revista Luz & Cena
Lugar da Verdade
Música não é Formula 1
Enrico De Paoli
Publicado em 10/04/2014 - 00h00
Divulgação
 (Divulgação)
Costumo dizer que seres humanos são não apenas competitivos, mas comparativos, a ponto de muitas vezes uma desgraça alheia servir de alívio para si próprio. Quem nunca ouviu frases como "tem gente que não tem o que comer" ou "tem gente que não tem um braço ou uma perna, e você tá reclamando de quê?", ou ainda "tem gente que trabalha o mês inteiro para ganhar x reais...", e por aí vai. O próprio marketing é comparativo, ou com produtos concorrentes, ou até mesmo com próprios produtos anteriores lançados pela empresa, "agora com espaço ainda maior... e ainda mais potência", ou, no áudio e música, "agora com o dobro de memória", "agora rodando em 192 kHz" etc. Toda essa comparação parece mexer com a cabeça do povo, e nos faz classificar algo que não é o melhor simplesmente como... ruim.

Desde criança eu sempre tive loucura por som. Meus olhos sempre brilharam ao ver equipamentos. Creio que muitos lendo essa página agora estejam sorrindo e dizendo, em silêncio, "eu também !". E a paixão foi tanta que me meti a fazer "equipe de som" para festinhas de playgrounds aos dez anos de idade. E logo após isso veio o Rock in Rio 1, que me levou a querer tocar um instrumento, e eu escolhi o teclado. Segui nesta paixão, áudio e música, e o meu sonho de carreira era me tornar um tecladista profissional e produtor. Não pensava em ser engenheiro, apesar de, sem perceber, eu querer gravar toda e qualquer bandinha que me meti a montar quando criança e adolescente. No dia de me matriculei em uma escola de áudio e música na California, descobri que somente os alunos de engenharia de gravação teriam acesso aos estúdios da escola. Foi naquele momento que decidi que eu oficialmente estudaria gravação em paralelo à música e programação de teclados e sintetizadores.

A vida seguiu, e fui agraciado de estar em bons estúdios, com bons produtores, como assistente, e depois como engenheiro e programador de synths. Em discos "grandes", de artistas como Ray Charles, Aaron Neville, Elton John, e depois, no Brasil, Djavan, gravei músicos inacreditáveis. Mas como tudo tem um lado ruim, isso começou a me mostrar que eu talvez não fosse o melhor tecladista do mundo. E se eu não era o melhor, então, na minha cabeça, o que eu era? Ruim. Eu comecei e me frustrar um pouco como músico. Frustração essa que foi rapidamente ofuscada pelo meu sucesso nos discos e turnês como engenheiro. E, por causa disso, não chegou a mexer com a minha felicidade de me sentir realizado na vida. E a vida seguiu...

De uns tempos pra cá, comecei a sentir saudades das programações de synths. Dos equipamentos MIDI, dos teclados, baterias eletrônicas, sequencers e tudo que envolve a criação antes da mix. E com todo esse tempo gravando, mixando e masterizando música, os ouvidos passaram a gostar ainda mais de bons timbres. Ou será que os ouvidos foram mixar e masterizar porque eles já lidavam com estes bons timbres da velha época em que programei synths?

A questão é que eu não precisava ter me tornado o pianista clássico mais virtuoso do planeta. Não precisava ter desenvolvido a melhor leitura do mundo. Não precisava ter virado um jazzista de respeito internacional. Não precisava ser o melhor instrumentista do mundo para simplesmente fazer... música. As músicas que mais marcaram época, as maiores canções da história (olha a comparação aí novamente!), muitas vezes não têm mais do que três acordes, mas elas têm, sim, lindos timbres, sentimento, bom gosto, e expressam o momento de quem cria e toca. O fato é que, para fazer música (ou qualquer arte), o que mais se precisa é de, simplesmente, paixão. E, com paixão real, vem a dedicação, o envolvimento, e isso somado ao bom gosto pode te levar a lugares incríveis. Mais do que isso: lugares muito felizes.

Seja num instrumento ou na própria engenharia de música, jamais se permita achar que você não é "bom o suficiente". Numa corrida, o piloto tem que vencer. Mas na música, assim como na Formula 1, mesmo que você não seja o melhor de todos, esteja certo de que quem está ali tem muito talento, mesmo não chegando na primeira posição. Se você sente vontade, você tem talento. A vontade é o maior indicativo disso. Sucesso pra vocês.

Enrico De Paoli é engenheiro de música. Conheça sua discografia, um pouco de sua história e também seus programas de treinamento Mix Secrets em www.EnricoDePaoli.com.
 
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