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Revista Luz & Cena
Caçando Mitos
Gravadores Analógicos de Fita Magnética (Parte 2)
A gravação analógica é realmente mais fiel e natural?
Fábio Henriques
Publicado em 03/10/2013 - 10h38

Depois de conhecermos de forma mais descontraída as características dos gravadores analógicos de fita magnética, vamos dar uma olhada mais formal nelas, para que possamos entender suas limitações. O mito que atacaremos hoje é o de que a gravação analógica é mais "natural" e "melhor" do que a digital, e que só foi substituída por esta por motivos econômicos.

CRONOLOGIA

Até o último quarto do século 19 não havia maneira de registrarmos áudio de forma a repetir sua performance. Os "áudio players" até então eram os músicos, e o equivalente a comprar uma música era a compra de sua partitura. A partir de 1876, com o aparecimento do gramofone, começa-se a registrar e reproduzir áudio através de métodos mecânicos. Por volta da virada do século, Poulsen constrói o primeiro gravador/reprodutor que utilizava magnetismo como método de registro - o "telegrafone".

O telegrafone usava como mídia não uma fita, mas um fio metálico. Durante os anos seguintes vários progressos foram conseguidos usando mídias como fita metálica, fitas de papel recobertas de material magnético e, finalmente, fitas plásticas recobertas. Por volta do final dos anos 1930, o "magnetofone", desenvolvido pelos alemães, era usado principalmente para broadcast e trabalhava já com fitas. Durante a guerra, o desenvolvimento da tecnologia pelos alemães foi significativo, enquanto que estagnava nos EUA. Com o fim da guerra, muito deste material foi apreendido pelos americanos, notadamente por Mullin, que "importou" esta tecnologia, que foi aprimorada e reintroduzida no mercado através, principalmente, da Ampeg, entre outras empresas, como a EMI. A popularização do formato ocorre primeiro em aplicações profissionais (estúdios de rádio, cinema e gravação de música), e a partir de 1948 começam a aparecer gravadores de fita para consumidores domésticos.

Como curiosidade, no primeiro episódio da série Mission: Impossible, de setembro de 1966, o objetivo da equipe é resgatar uma gravação magnética guardada por um espião russo. Era uma gravação em fio de metal, que estava disfarçada como arame de cerca, e ao longo do filme é usada como linha de pesca (!).

A partir dos anos 1950, a fita analógica magnética dominou o mercado de gravações profissionais, hegemonia que duraria até a popularização dos meios digitais de gravação (que a princípio usavam também fita magnética - DAT, DASH, PRODIGI, ADAT), que, por sua vez, seriam superados pela gravação em computadores.

A FUNÇÃO DO GRAVADOR

Como já vimos aqui antes, podemos definir a função de um equipamento "gravador" como sendo a capacidade de registrar informação da forma mais fiel possível. Um gravador ideal é aquele que na reprodução devolve a mesma informação que lhe foi entregue. Embora esta situação seja, na prática, impossível, podemos considerar como muito eficiente um gravador que, ao reproduzir uma informação, seja indistinguível da informação original, pelo menos aos sentidos humanos típicos.

É fato conhecido que um gravador analógico de fita devolve um som absolutamente diferente do que lhe foi enviado, não sendo necessários ouvidos treinados para identificar a diferença. Isto lhe confere uma significativa desvantagem em relação a gravadores digitais, mesmo os de fita. Pode-se argumentar que esta modificação no som é agradável, quente, etc., mas um dispositivo que basicamente altera o conteúdo do áudio é classificado como "processador", e não um "gravador" de qualidade. Na verdade, é uma questão ovo-galinha. A gente não sabe se o som entregue por um gravador analógico é "melhor" porque durante pelo menos trinta anos fomos submetidos exclusivamente à sua sonoridade ou se o processamento sonoro agradável é uma feliz e oportuna consequência do ato de gravar.



PRINCÍPIO DE FUNCIONAMENTO

A gravação magnética se baseia na propriedade que alguns materiais apresentam de, uma vez aplicado a eles um campo magnético, reterem uma parte de sua intensidade e orientação (norte-sul). O nosso objetivo é conseguir um meio de registrar de modo permanente uma onda elétrica que representa um sinal de áudio, que tem valores de amplitude positivos e negativos e que oscila com uma determinada periodicidade. Esta amplitude se relaciona com o "volume" do áudio naquele instante, e a velocidade com que esta oscilação acontece, com a frequência.

O óxido de ferro (ou ferrugem) é um dos materiais que apresentam memória magnética, e nos gravadores são usadas finas fitas plásticas recobertas com ele (através de colas especiais). Na verdade, podemos interpretar este material como sendo composto de ímãs microscópicos, que se reorientam de acordo com algum campo externo que incida sobre eles, assim como acontece quando a gente imanta uma chave de fenda esfregando nela um ímã permanente.
Assim, um elemento chamado "cabeça de gravação" converte eletricidade em magnetismo e o faz incidir sobre a fita magnética, através de uma fenda (gap). A cada instante de tempo, uma certa amplitude elétrica é convertida em intensidade magnética e incide sobre uma região de fita. Fazendo a fita se deslocar na frente da cabeça, conseguimos imprimir as variações desta amplitude. É um processo semelhante ao que um eletroencefalógrafo ou um sismógrafo usa para registar graficamente oscilações elétricas.

Pode-se concluir que a habilidade da fita em registrar frequências está associada ao tamanho destas partículas microscópicas, à velocidade com que a fita se desloca em sua frente e ao tamanho do gap da cabeça. Os gravadores profissionais analógicos trabalhavam a velocidades típicas de 15 e 30 polegadas por segundo (38 e 76 cm/s). Para graves mais profundos, usava-se a velocidade menor, perdendo, com isso, os agudos, e para agudos melhores, a maior velocidade implicava em menor capacidade de registro dos graves.

Uma questão importante é o fato de que para se otimizar a transferência entre cabeça e fita, estes devem estar em contato direto. A fita então precisa "esfregar" a cabeça tanto no ato da gravação quanto no de cada leitura. Isto obviamente provoca um considerável desgaste tanto da fita em si quanto da própria cabeça, o que traz algumas consequências indesejáveis. Por exemplo, quando se faz um projeto todo em fita, ao se gravar os últimos tracks, normalmente os mais importantes, como a voz, a qualidade da fita já não é tão boa quanto no início da gravação. Da mesma forma, no momento em que mais a gente precisa da qualidade da fita, na hora de se passar a mixagem para a fita master, é o momento em que a qualidade do áudio será a pior de todas, o que é um contrassenso.




AS TRÊS CABEÇAS E O MULTITRACKING

Os gravadores profissionais apresentam, na verdade, três cabeças. Quando ocorre uma gravação, a fita passa primeiro por uma cabeça apagadora, que imprime um magnetismo bem intenso de frequência muito alta, que "sacode" e "embaralha" as partículas magnéticas, resultando em "silêncio". Depois, vem a cabeça de gravação, que imprime o magnetismo, e, finalmente, a cabeça de reprodução, que nos permite ouvir o que foi gravado (pode-se, durante a gravação, ouvir apenas o que está indo para o gravador, mas como ele modifica o som, é fundamental que se ouça, em algum momento, mesmo que posterior, exatamente o que foi registrado). Repare que existe um atraso (delay) entre o sinal que entra e o que sai do gravador, o que desde cedo foi usado para se obter o famoso "slap echo" em mixagens.

Se empilharmos na vertical um conjunto de várias cabeças de gravação por um lado e gravação do outro, é possível registrar diferentes informações simultâneas na fita, o que se chama de "multitracking". Vamos supor que possamos ouvir separadamente o que está indo para a cabeça de gravação em um track e o que está passando pela reprodução em outro. Em tese, poderíamos primeiro gravar um instrumento e, depois, ouvindo o que foi gravado, registrarmos a voz, por exemplo, em outro track. O problema é justamente o atraso entre as duas cabeças, que acaba com o sincronismo das duas execuções.



Por causa de suas características físicas, se uma das cabeças de gravação não está efetivamente gravando, ela fica sensível ao campo magnético que passa à sua frente, e se fizermos um circuito elétrico capaz de amplifica-lo, podemos ouvir o som deste ponto. Assim, podemos gravar na outra cabeça, acima desta, simultaneamente. Este processo é denominado sel-sync (sincronização seletiva), e ao ser criado revolucionou o mercado de gravação. A desvantagem é que a cabeça de gravação não apresenta uma qualidade tão boa de reprodução, mas este fator deixa de ser importante, pois o processo só acontece na hora de gravar algo. Na etapa de mixagem ou para audições monitora-se somente pelas cabeças de reprodução.

BIAS

Algumas pessoas têm uma ideia romântica de que, como a onda elétrica é convertida diretamente para campo magnético, isso torna esta gravação mais natural. Porém, as características da fita não permitem esta passagem direta. Para os valores mais baixos de amplitude é bem difícil mexer nas partículas de forma a romper sua posição inicial. Ao mesmo tempo, lá no extremo mais alto de amplitude começa a ser necessário um aumento cada vez maior de intensidade magnética incidente para um pequeno aumento de magnetismo registrado. Para os sinais de baixa intensidade, portanto, ocorre o que se chama de distorção de crossover, enquanto que nos de alta ocorre a saturação.

Para evitar estes dois extremos, usa-se um sinal de polarização (bias), que tem alta frequência, tipicamente acima de 50 kHz, e é aplicado à fita junto ao sinal de áudio (na verdade, o áudio modula em amplitude o sinal de bias). Ou seja, o que é gravado não é audível, pois são variações do sinal de bias provocadas pelo sinal de áudio. Este sinal é captado durante a reprodução e sobre ele é aplicado um filtro muito forte (bias trap), para que do gravador só saia informação audível. Só este fator já seria suficiente para colocar por terra qualquer argumento de maior "naturalidade" no processo de gravação magnética.

PROBLEMAS MECÂNICOS

Além de todas estas considerações eletromagnéticas, ainda cabe ao gravador executar a ingrata tarefa de se fazer deslocar pela frente das cabeças, em velocidade linear constante, uma quantidade considerável de fita (uns quatro a cinco quilos de um lado a outro).

Basicamente, aparecem daí dois problemas típicos: o Wow (pronuncia-se "uáu") e o Flutter. O primeiro decorre de variações na velocidade de deslocamento da fita que provocam alterações de pitch de baixas frequências (daí a onomatopeia do nome). O segundo aparece como uma versão em frequências mais altas do Wow, e normalmente decorre de irregularidades no deslocamento que fazem a fita tremular ao longo do caminho.

CONCLUSÕES

Toda esta discussão aborda apenas superficialmente a miríade de problemas a serem contornados em busca de se obter gravações de qualidade de uma fita analógica. O grau de sofisticação a que estas máquinas chegaram é realmente surpreendente, mas a custa de elevados investimentos, tornando-as de uso exclusivo de estúdios com uma considerável quantidade de recursos.

O fato de que um equipamento destes modifica nitidamente o som registrado o deixa em desvantagem enquanto "gravador", tendo sido necessário um gasto gigantesco de tempo, habilidade e recursos, ao longo de décadas, para suplantar suas deficiências. As possíveis vantagens de seu uso como "processador" acabaram sendo superadas pela praticidade, fidelidade e capacidade de adaptação da gravação digital. E, hoje, com os softwares simuladores, mesmo estas vantagens acabaram se tornando secundárias. É fácil se conseguir digitalmente o "som de fita". Já o inverso...

Fábio Henriques é engenheiro eletrônico e de gravação e autor dos Guias de Mixagem 1,2 e 3, lançados pela editora Música & Tecnologia. É responsável pelos produtos da gravadora canção Nova, onde atua como engenheiro de gravação e mixagem e produtor musical.
 
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