RSS Facebook Twitter Blog
Revista Luz & Cena
Lugar da Verdade
Nem sempre o que vale para o estúdio funciona no show
E vice-versa
Enrico De Paoli
Publicado em 07/06/2013 - 22h54
Mixar discos e mixar shows. Duas artes que se cruzam o tempo todo por um motivo simples: ambas são mixar música. E eu comparo mixar com uma forma passiva de reger, pois entre um regente e uma orquestra há uma interação mútua. Já o engenheiro de mix "rege" os músicos de uma forma unilateral, pois os mesmos já estão gravados, ou em cima do palco, sem nenhum contato com o engenheiro de mix do PA. Então, apesar de ambas as atividades terem muito em comum, há coisas que valem muito para uma, mas pouco ou nada para a outra.

Compressão Paralela: Técnica muito usada em estúdios no mundo todo, ela duplica um canal de áudio e insere uma compressão superagressiva neste segundo canal replicado, com attacks e releases rapidíssimos, e aumenta-se o ganho de saída do compressor, trazendo para cima todos os elementos que antes tinham volume baixíssimo. No estúdio, a função dessa técnica é obter um timbre ultracomprimido mantendo as características originais do timbre com o canal não processado. Misture a gosto! A questão é, se você fizer isso ao vivo, vai trazer, neste segundo canal, todo o ruído do palco, plateia e PA. É praticamente certo que o resultado que no estúdio é muito musical, ao vivo será um caos sônico.

Equipment Passthrough: A tradução pra isso seria "passar o áudio pela eletrônica do equipamento". Por que os equipamentos vintage são tão famosos em estúdios ao redor do planeta? Simples: porque passar o áudio por aqueles componentes eletrônicos ou simuladores em forma de plug-ins modifica o som. Enquanto não existia tecnologia para obter um som absolutamente puro enquanto ele passava por um compressor ou equalizador, trabalhava-se arduamente para a evolução dessa tecnologia. Quando finalmente conseguimos essa pureza toda, descobrimos que antes era mais legal! Vai entender. Nem sempre usamos um compressor ou eq vintage porque precisamos nivelar o volume do áudio ou equalizar uma frequência. Muitas vezes o que aquele equipamento causa no nosso som, mesmo sem estar processando nada, é musicalmente desejado. No estúdio, essa sutileza faz uma enorme diferença. Ao vivo, não apenas ouvimos muito menos desses detalhes, como os próprios alto-falantes do PA já inserem uma boa quantidade de distorção harmônica no nosso som, e é muito difícil precisarmos de mais.

Slap Delay: A melhor maneira de explicar o slap delay é ouvindo uma música do Elvis. É aquela resposta rápida, aquele eco que existe no som da voz. Nos anos 1980 esse efeito ficou mais sutil, mas ainda com muitas variantes, sendo usado para dar profundidade à voz e a outros instrumentos. Profundidade? Mixando num ginásio? Creio que você precise de menos, e não de mais! Logo, o slap delay é mais raramente usado em uma mix de show.

Reamp: Este termo vem de "re-amplificação". Ou seja, um canal já gravado que o engenheiro passa novamente por um amplificador, microfona o mesmo, e regrava quando busca mais harmônicos para aquele timbre na mix. Ao vivo, os instrumentos já são ligados em seus amplificadores e pedais, e assim como nos exemplos acima, normalmente o engenheiro vai buscar mais clareza ao vivo, e não mais "gordura".

Microfonação distante: Possivelmente, a maior de todas as falhas na produção de discos independentes seja a falta do entendimento de que, quando se grava, se capta o espaço, o ar, a distância. Isso é o que dá a dimensão que tanto ouvimos nos grandes discos. Trabalha-se explorando o espaço. Ao vivo isso é impossível. Quanto mais longe o engenheiro microfonar um instrumento, maior o vazamento de outros naquele microfone. Fora o fato de que, ao vivo, já se tem bastante espaço entre o PA e o ouvinte. Novamente, como nos exemplos acima, precisa-se de mais definição, e não de menos.

Mono: Enquanto ao vivo a gente já tem bastante distorção harmônica e espaço, no estúdio é o que muitas vezes buscamos para obter aquele tamanho do som e da mix. Ao vivo, tendemos a mixar com menos radicalismo no espaço e no estéreo. Até porque, no show, se endereçarmos um solo de guitarra totalmente pra o lado esquerdo do PA, quem estiver do outro lado não vai ouvir nada!

Automação: Não é apenas a banda que toca ao vivo num show - a mix também é ao vivo! Sendo assim, não há rewind. Toda a mix acontece em apenas uma passada. A minha técnica pra isso é trabalhar "distraindo" o ouvinte. Ou seja, faço eventos na mix que chamam a atenção do público para o que é importante que seja ouvido, percebido e sentido naquele momento. Apesar disso valer para as mixes de estúdio, em um disco o ouvinte pode ouvir a sua mix infinitas vezes, cada uma delas focando os ouvidos em áreas diferentes da música, do arranjo e da mix. Sendo assim, tudo precisa realmente estar em seu devido lugar, pois aquela música será apreciada de todos os ângulos. Já ao vivo, a mix será como uma fotografia, com o engenheiro realçando dinamicamente os melhores ângulos daquela música e arranjo.

Isso tudo mostra que a engenharia de música, por mais que seja muito baseada em física, acústica e eletrônica, tem toda essa matemática para servir à própria música e à experiência sônica de quem a ouve. Muito além dessa matemática é que entra o talento de cada um para causar as emoções que todos sentem ao ouvir um grande disco ou um show inesquecível.

Enrico De Paoli é engenheiro de música, com grammys latino e americano no currículo e créditos com artistas incluem Ray Charles e Djavan. Conheça suas mixes e masters, assim como seus treinamentos Mix Secrets, visitando www.EnricoDePaoli.com.
 
Conteúdo aberto a todos os leitores.