RSS Facebook Twitter Blog
Revista Luz & Cena
Músico na real
133ª AES, em San Francisco
Novidades, ausências e expectativas
Fernando Moura
Publicado em 05/01/2013 - 10h09

Como tenho a fantasia de que alguns leitores acompanham essas colunas regularmente, fico imaginando se alguns de vocês se lembram de minha visita a essa Disneylândia musical há dois anos, também em San Francisco. Ensolarada e mais amistosa que a paranóica New York, a Califórnia, que um dia foi a pátria do psicodelismo e do flower power, hoje está na ponta das movimentações da indústria de computadores e também das vinícolas situadas na região que tem o sugestivo nome de Napa Valley.

A exposição/congresso da Audio Engineering Society se deu no mesmo local de 2010, o Moscone Center, situado no complexo arquitetônico também sugestivamente denominado Yerba Buena Gardens. Após descer a escada rolante que dá acesso ao maravilhoso mundo das inovações tecnológicas mais incríveis à mão de todos que têm seu crachá pendurado no pescoço, independentemente de raça, credo ou poder econômico, a primeira coisa que chamou minha atenção foi a sensível diminuição do espaço usado pelos expositores.

Numa primeira vista, cerca de um terço do pavilhão estava habilidosamente envolto em cortinas para que não ficasse muito aparente sua menor utilização. Ao examinar mais atentamente o salão e considerar o espaço ocupado pelos painéis dedicados a palestras sobre "Project Studios", patrocinadas por uma revista inglesa e fabricantes de áudio, fiz a constatação óbvia de que o evento havia encolhido consideravelmente. Fiquei surpreso devido à recuperação da economia americana e ao ascendente mercado de home studios e "wanna be produtores" que infestam esses eventos, sempre à procura do último truque que vai lhes abrir as portas do sucesso e da fama.

Num galope de apresentação rápido, notei a ausência de gigantes do software, como Pro Tools, Logic, Steinberg, Ableton e Digital Performer, e também de fabricantes de instrumentos musicais como Korg, Yamaha e Roland, que no evento de 2010 tinham presença destacada. Meio decepcionado, mas querendo creditar minha decepção à longa viagem e ao fuso horário de seis horas a menos, fui dar uma olhada na programação de palestras, workshops e debates, que, para mim, acabam sendo a maior atração desse tipo de evento. Pensar, ouvir e perguntar a outros que estão na mesma batalha que nós sempre é uma experiência enriquecedora. Saber ouvir é uma necessidade na vida dos músicos, não é mesmo, leitor?

Então vamos nessa.

27 DE OUTUBRO, 9H
MOSCONE CENTER - SAN FRANCISCO

O "parque de diversões" só abre às 10 horas, mas chego antes para me registrar e assistir a uma palestra sobre técnicas de pós-produção de áudio para cinema digital com alguns pesos pesados da área, como Lon Bender, Brian Mc Carthy e Jason La Rocca, com créditos que incluem Braveheart, CSI e muitos outros que uma boa "googleada" poderá lhe mostrar facilmente.

Os caras são unânimes em tratar o áudio de um filme como uma soma de fatores integrada e coordenada a serviço de construir a narrativa sob o ponto de vista auditivo. Bender inclusive destacou a importância de um sound supervisor, o profissional que é responsável pela coordenação e integração de todos os setores envolvidos: o som direto, a dublagem dos diálogos, a trilha sonora, os efeitos sonoros, ruídos de sala (foley), as canções e suas gravações em sincronismo com bases pré-gravadas para filmagem... ufa! Fiquei sonhando, me perguntando se algum dia evoluiremos para essa mentalidade aqui no Brasil, onde, muitas vezes, mesmo como compositor da trilha sonora, recebo aquele telefonema ofegante pedindo "algumas opções de um som de trovão" no meio de uma mixagem que já está atrasada.

Pro Tools é o standard indiscutível para eles, e embora prefiram o som das mesas analógicas, mixar in the box conta muitos pontos a favor pela mobilidade.


La Rocca destacou a importância da consistência sonora em séries de longa duração, como CSI, que mesmo passando por diferentes estágios da tecnologia de áudio, teve que manter um padrão sonoro e musical. Falando nisso, ele mostrou alguns exemplos de como juntar MIDI e músicos ao vivo em produções para TV, "tipicamente com orçamentos mais baixos que o cinema". O curioso foi vê-lo falando numa sessão de cordas "pequena", com oito violinos, quatro violas e quatro violoncelos. Dezesseis cabeças em certos países do mundo é festa, mas saio sem contar essa para ele e sigo em direção ao pavilhão de exposições, que já está aberto.

Faço um galope de apresentação e tal como o macaco que fareja a banana seja lá onde ela estiver, me surpreendo no estande da Moog reclamando com os jovens e solícitos expositores sobre a pouca variedade de instrumentos em exposição (nada de MoogerFoogers, por exemplo). Pedi para comparar os graves do MiniTaur com os do Little Slim Fatty e acho que o rapaz da Carolina do Norte ficou sem entender nada diante da minha gargalhada quando ele propôs tocar um CD com os dois instrumentos gravados para eu comparar. Minha analista diria que isso é uma demonstração terrível de arrogância, mas preferi "fazer justiça com minhas próprias mãos" e fiquei lamentando que a nota mais aguda possível no MiniTaur seja um C4 (!).

Voltei ao mundo das conferências para mais um round na saga das "Loudness Wars", que nessa versão prometia uma execração pública da função "normalize" promovida ao vivo por lendas como Bob Katz, George Massenburg e Thomas Lund, da TC Electronics.

Katz foi o mais poético, pedindo uma chance para a dinâmica musical livre dos compressores "em nome da música, que, afinal, é a razão maior para todos nós". Citou o célebre paradigma de Bruce Swedien, afirmando que "compressão é para amadores". Já Massenburg foi mais realista ao colocar que o problema não é "se", e sim "quanto" de compressão vai ser usado, uma vez que ela é parte do arsenal de ferramentas para se gravar música. Lund, com sua calma nórdica, foi mais contundente ao mostrar, através de sucessivos exemplos musicais, começando com um quarteto de cordas, que o nível sonoro de um disco do Metallica pode ser mais alto que uma gravação de ruído branco somente!

Unanimidade foi a recomendação de não usar a função normalize no iPod, mesmo que masterizar para iTunes já esteja se tornando um padrão de masterização, como ouvimos durante anos aquele papo de "som radiofônico".


Almoço rápido um cheesetudo numa lanchonete American Graffitti perto do Yerba Buena e volto a tempo de dar uma olhadinha no final da palestra de Mr. Bonzai, jornalista longevo da revista Mix americana e figura lendária na costa oeste. O papo era sobre o som de San Francisco nos anos 1970, com a participação de membros do Big Brother & Holding Company, que passou à história como o conjunto que nos deu a chance de conhecer o talento de Janis Joplin. Mesmo depois de um histórico arranjo de Summertime, eles levaram da cantora o devido pé na bunda graças à diferença gritante de musicalidade entre instrumentistas razoáveis e uma cantora como nunca se viu. Em 2010, no mesmo evento, tive o prazer de ouvir Ray Manzarek, tecladista do The Doors, músico e personagem muito mais atraente que o guitarrista de um disco só.

Volto para o salão de exposições e não posso deixar de me admirar com a quantidade de pré-amps, summing mixers e processadores analógicos de todos os pedigrees, cores e designs (veja as fotos). Em especial, não posso entender porque tantos fabricantes expõem cópias do Neve 1073 num recinto onde o original também está exposto!

Passo pelo stand da Woman's Mission in Audio, que é uma associação dedicada ao nobre propósito de combater o machismo (real) no mundo do áudio. Compro uma camiseta/donativo e declino do convite para uma festinha mais tarde numa boate local ao perceber (sem preconceito, apenas por objetividade) que a orientação dessa galera é coincidente com a minha, se o leitor consegue captar minha mensagem politicamente incorreta, mas realista.

De volta ao mundo das palestras, duas exposições de professores universitários relatando suas aventuras no mundo real da música para imagens. Na primeira, um inglês residente em Hong Kong se queixando das impossibilidades de se fazer música orquestral para filmes de luta devido à enorme concorrência e habilidade dos locais em fazerem tudo em MIDI e com resultados realistas. Os exemplos que ele mostrou são realmente impressionantes e francamente gostei bem mais dos MIDI do que dos equivalentes orquestrados, gravados e mixados naquele mundo do 1,99.

A outra exposição foi de uma polonesa lustrosa e gordinha, que estabeleceu relações entre sentimentos e andamentos musicais em filmes e séries de TV. Infelizmente, numa série de mais de 20 exemplos, ela não conseguiu mostrar pelo menos um em que a música mostrasse algo que não fosse redundante ao que estava sendo apresentado pela imagem: andamentos rápidos para cenas de perseguição, lentos para cenas tristes... Fiquei me perguntando como seria em polonês aquela máxima atribuída a Samuel Goldwin (um dos pais do leão da Metro): "músicas tristes em tom menor, músicas alegres em tom maior!".



A obviedade não tem pátria, não é mesmo, leitor? Já perfeitamente saciado técnica e esteticamente, conferi o horário e vi que estava na hora de ganhar as ruas de San Francisco e ouvir seus sons e pessoas.


 MOBILE: AFINAL, O FUTURO COMEÇA QUANDO?

Ao sair para viajar, percebendo que as aplicações de áudio em celulares teriam um grande espaço na 133ª AES, pedi ao Marcio, nosso editor flamenguista, um briefing para poder desenvolver o que eu esperava que fosse ser o hot topic de San Francisco.

Infelizmente, em todas as palestras que assisti sobre áudio em celulares, áudio para mobile TV e necessidades de áudio DSP para celulares (essa parecia uma viagem de ácido para um músico como eu), a tônica dos palestrantes era a mesma: sem dúvida, há um futuro nas aplicações musicais e de áudio para celulares, mas tirando o pessoal "fashion", que mesmo sendo eventualmente formador de opinião é fração pouco significativa de compradores para as grandes corporações, o consumidor menos "modinha" ainda está lento nessa adesão ao novo mundo. Por isso, os aplicativos ainda estão muito na fase do "oh, que incrível fazer isso no celular!", e ainda existe uma grande distância a percorrer para passarem do estágio "oh, que bacana" para "ah, é bem melhor assim!".



Aplicativos como afinadores, metrônomos e ferramentas de medição em geral estão bem mais adiantados e parecem ser mais afeitos ao formato do celular do que instrumentos virtuais, que precisam de interfaces, e aí o "prático" se transforma num conglomerado de penduricalhos totalmente inconvenientes.

É inegável que, para o pessoal do Mac, as coisas são mais naturais nessa área com integração entre as diferentes iCoisas e, naturalmente, por serem a tal faixa de público mais sofisticada, têm mais opções para escolher do que o pessoal do mundo do Windows. Para esses, começa agora a preparação para nova versão do OS com todos os pesadelos, incompatibilidades e inconsistências típicas dos upgrades, e isso certamente vai inibir essa turma de gastar uma grana num celular que não transmite segurança quando se considera sua integração com o resto da vida do sujeito.

Mais ainda: se você é, como eu, um inábil nato com coisas pequenas, delicadas e operáveis por touch screen, esse mundo dos aplicativos em celular ainda se mostrará hostil. Claro que passar de todos aqueles botões de um Prophet 5 para um slider e um visor de LCD cinza com letras pretas do DX7 foi difícil, mas o teclado tinha as mesmas notas!

O celular, como eu já havia notado há um bom tempo no Japão, chegou para ficar na vida dos indivíduos, mas ainda precisamos entender melhor como e quando ele nos ajuda e em que situações é apenas mais um tamagotchi que se alimenta vorazmente do nosso trabalhado dinheirinho.


28 DE OUTUBRO, 10H
MOSCONE CENTER - SAN FRANCISCO


Mais do que a noite animada, o fuso horário de seis horas a menos me fez chegar um pouco mais tarde e perder um pedaço de uma ótima palestra com Sue Zizza e David Shinn, que trabalham com foley para cinema e estão nos créditos de filmes como Apocalypse Now. Segundo eles, Coppola foi o primeiro diretor de cinema a reconhecer a importância de ruídos e sons produzidos especialmente para um determinado filme. Até então, os sons de pássaros ou de mar em uma cena passada na costa americana corriam sério risco de serem os mesmos usados num filme rodado no extremo oriente, o que é "total nonsense" na visão desses artistas que consideram suas criações sonoras mais perto da representação do que do sound design.

Lembrei de uma peça de teatro para a qual, anos atrás, fiz a trilha sonora. O diretor queria uma trilha para uma coreografia só com músicas de campainha, e eu, depois de sucessivas tentativas com meus amigos sonoplastas, descobri que nas coleções só havia três tipos de sons de campainha! Explicar isso ao diretor soou como desculpa e a solução foi partir para o mundo real e gravar os muito mais variados sons de campainhas de apartamentos das imediações do meu estúdio.




De volta ao salão de exposições, assisto a demonstrações de interessantes softwares da iZotope, como o Íris - um conjunto de algoritmos e filtros dedicados ao sound design -, e a versão 5 do masterizador Ozone, espécie de "cheesetudo da masterização", que tem seus momentos em meu estúdio na correria do dia a dia de entregas em prazos impossíveis.

Comecei a entender o porquê de um certo esvaziamento na AES: quase todos esses plug-ins podem ser downloadeados, funcionando perfeitamente por 15 dias para você decidir se quer ou não comprá-los. Além disso, o YouTube está cheio de demonstrações desses produtos com todo tipo de gente: experts, músicos, engenheiros de suéter ou boné de rapper, engraçadinhos ou gostosas explicando o produto em detalhe, com tudo criteriosamente editado, como convém a uma peça publicitária.

Esvazia-se a função do demonstrador ali, ao vivo, que na década de 1980 era representada pelo músico frustrado pentelho vendedor das lojas da Rua 48, em New York, e depois passou para o demonstrador profissional ("product specialist" ou seja lá o nome que o departamento de marketing quiser colocar!), até cair no estágio atual de um certo desinteresse de parte a parte.

Convencido de que a melhor coisa da AES não era ficar perambulando pelos estandes, e sim trocar ideias sobre música, fui assistir a um painel de produtores do porte de Narada Michael Walden e Jack Douglas (procure saber!), no qual citaram suas sessões de gravação inesquecíveis e as mudanças que a tecnologia trouxe ao processo criativo.



Para encerrar, no fim da tarde, uma outra palestra, curiosamente intitulada "Show me the money!", sobre as possibilidades e caminhos da sobrevivência no mundo real da música. Foi mais ou menos o que você lê aqui nessa coluna, querido leitor, com alguns participantes interessantes, como Mixerman, que está lançando um audiobook sobre produção musical, e Dave Hampton, que trabalhou como programador de Herbie Hancock nos anos 1980, entre outros que são menos interessantes como personalidades musicais, mas que parecem ser bons em marketing, vendas de produtos e em conselhos de auto-ajuda musical. Questões clássicas, como "as redes sociais ajudam mesmo ou é só ilusão?" foram respondidas de maneiras igualmente clássicas, como "minha filha abriu uma conta para mim há um ano, mas eu acho que o que conta mesmo é você resolver o trabalho e torcer para ser chamado para o outro" ou "use as redes sociais, mas não se deixe ser usado por elas".

Ou seja: o clima geral de comida a quilo, de "mais do mesmo" e de "torne-se uma celebridade que as melhores oportunidades serão suas" começando a dar sinais de exaustão, sem satisfazer os anseios de quem está chegando e as angústias de quem já está e não quer sair.

E você, leitor, já pensou no que está trazendo de pessoal e único para essa festa?

Vejo você no mês que vem.

Até lá.

Fernando Moura é flamenguista, músico, compositor, arranjador e produtor musical, além de ex-fumante.
Visite: www.myspace.com/fernandomoura.
 
Conteúdo aberto a todos os leitores.