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Revista Luz & Cena
Músico na real
Algumas coisas que você precisa saber antes de gravar seu próximo CD autoral
MOTIVAÇÃO
Fernando Moura
Publicado em 13/07/2012 - 13h22
Marcelo Pizzato
 (Marcelo Pizzato)
Diante de tantas maneiras disponíveis atualmente para difundir sua música pela web, pode parecer meio anacrônico falar em gravar um CD autoral como há 20 anos. Não sou saudosista nem estou propondo uma discussão do tipo analógico vs. digital em relação à sua inclusão como artista no cenário profissional da música. Divido com você, leitor, que ultimamente tenho percebido que muita gente ainda prefere receber um CD para conhecer um trabalho musical do que acessar sites com programações visuais mirabolantes ou links para "curtir" páginas em redes sociais.

Para conhecer shows ao vivo, a escolha por alguma performance sua no YouTube vai se consolidando como o caminho mais objetivo, mas para tomar contato com sua música, tenho me surpreendido com uma certa preferência por pedidos de CD "físico" por parte de jornalistas, produtores de programas de TV e curadores de festivais de música. Percebo uma tendência em preferir não acessar links, pois podem não funcionar ou depender da última versão do software "Y", que só roda no OS "Z", entre tantas outras possibilidades de insucesso.

Velocidade de conexão e muitos outros problemas potenciais existem, e para falar a verdade, nada se compara à simplicidade franciscana de colocar um CD para tocar num computador, num player instalado no seu carro ou até mesmo num banheiro de sua casa, como fazem diversos músicos que conheço. O CD físico, mesmo não sendo a coisa mais sexy e trendy para vender sua música, funciona perfeitamente como um cartão de visitas, e se você faz um CD, nada vai impedi-lo de disponibilizar faixas na web.

Se você não lê essa revista mensalmente na tela do computador e tem um trabalho autoral em música, acho que vai gostar de me acompanhar nessa matéria, querido leitor.

ESCOLHENDO SEMPRE O MELHOR PARA O TRABALHO

Tudo são escolhas nesse processo, e é necessário pensar rápido, mas sem precipitação. Primeira encruzilhada: quanto gastar e quem paga? Existem inúmeras opções de patrocínios, renúncias fiscais, concursos, permutas, parcerias, vaquinhas e tendências. Torço para que você, leitor, tenha ao menos uma senhora que o ajude, mas lembre-se do ditado norte-americano "there is no free lunch", que, apesar de ser traduzido nos filmes da Sessão da Tarde como "não tem lanche frio", na verdade quer dizer que sempre haverá compromissos, palpites e exigências de quem assina os cheques.

A situação real que me serve de base para escrever esse artigo é o meu novo CD CosmeDamião - um duo de piano acústico e percussão com Ary Dias -, que foi feito totalmente dentro dos parâmetros que vou descrever aqui.

Depois de TudoPiano, meu último trabalho solo, que foi feito usando o piano acústico como única fonte sonora, e por eu trabalhar uma grande parte do tempo com teclados e programações para trilhas sonoras, optei por continuar na linha "acústico + performance", sem enveredar pela tentação "all by myself orchestra", gravando sozinho nas entranhas solitárias de meus domínios em Bariri Estúdios.

Conheço Ary desde os anos 1970, quando o vi tocando na Banda do Companheiro Mágico - um conjunto que trazia toda a psicodelia de Salvador daquela década e que incluía estudantes da UFBA e seus experimentos com gente do calibre de Ernest Widmer, Walter Smetak e Lindemberg Cardoso. Nos anos 1980, tocamos juntos na Cor do Som (onde ataquei como músico convidado) e no trio elétrico de Armandinho, Dodô e Osmar.



Tal como no cinema, onde o casting é elemento fundamental para o sucesso de uma produção, ao fazer um CD, decidir quem serão seus parceiros é absolutamente fundamental, leitor! Faça um balanço entre os parâmetros musicais e pessoais, pois a convivência é intensa e, assim como no casamento, diferenças que parecem um charme no início podem se transformar em barreiras intransponíveis com a intimidade obrigatória de todo o processo de gravação de um álbum autoral.

Próxima decisão: escolher ou pelo menos mapear o repertório que será gravado: a autoralidade das músicas. Quantas serão originais e quantas serão de outros autores? Essa decisão é fundamental, uma vez que gravar músicas de outros autores significa ter permissão para tal, o que invariavelmente significa pagar à editora pelo direito de gravar a obra "Y" que está sob a responsabilidade da editora "Z". Em 1991, em meu disco independente Cinema Tocado, gravei uma versão em piano solo de Goodbye Pork Pie Hat, de Charlie Mingus. O engenheiro de gravação que mixou o meu disco trabalhava com a Mingus Dinasty Band, e através dele cheguei à Susan Mingus, viúva do grande contrabaixista e administradora de seu espólio musical. Ela foi bem objetiva pelo porteiro eletrônico de seu hotel em Manhattan:

"O Tom Swift já me falou de você. Enquanto for independente, não precisa me pagar nada, mas se negociar com alguma gravadora, volte a fazer contato."

Em 20 anos, muita coisa mudou. Hoje em dia, se a Ivete Sangalo quiser gravar Giant Steps, a editora não cobrará coisa alguma, de olho na vendagem dos discos, mas se um artista independente quiser gravar algum standard, terá que pagar pela autorização para isso. O leitor deve ficar atento à abrangência da permissão, se é por número de cópias do CD e se poderá usá-la em vídeo que circule pelo YouTube. A situação do direito autoral está mais pantanosa do que nunca, e em rio que tem piranha, jacaré só mergulha com papel assinado, certo?

No caso de músicas originais, melhor registrá-las de alguma forma, mesmo que seja através daquele conhecido expediente de mandar um CD através de carta registrada para uma pessoa de sua confiança, retendo o comprovante de envio para se proteger de qualquer acaso indesejável no futuro. Quanto a editar, acho desnecessário, até porque as editoras em geral se interessam mais por músicas que tenham potencial para um cantor de sucesso querer gravar ou se parecerem candidatas naturais a trilhas sonoras de novela e filmes, por exemplo.

PRÉ-PRODUÇÃO

Próxima escolha: onde será a gravação? Isso tem que ser feito logo e de comum acordo com os participantes do trabalho. Um bom caminho é saber quanto se pretende gastar nisso e dimensionar estúdio e número de horas a ser gasto, sempre com uma margem de 10 a 20%, porque nunca vi gravação independente terminar antes do previsto. Seja lá qual for a sua escolha, leve a sério a importância de ensaiar antes de gravar. Quanto mais vocês tocarem as músicas, menos tempo gastarão no estúdio e maiores as possibilidades de surpresas criativas acontecerem na hora da gravação.

Gravar os ensaios, ainda que sem preocupação com qualidade, nessa época de smartphones e iTrecos que registram qualquer movimento nosso, ajuda muito. Quanto você vai ensaiar é difícil dizer, mas uma boa medida é pensar em ir para o estúdio quando todos os participantes não estão precisando mais ler partituras nem letras do repertório a ser gravado. Programações, formas e arranjos das músicas devem ser testados e decididos antes da gravação pra valer, a menos que você tenha uma paciência budista ou o orçamento do Steely Dan nos anos 1980, quando chegavam a levar cinco anos em estúdio para gravar um disco. Ninguém discute a qualidade desses resultados (certo, Ed?), mas o cenário econômico e musical hoje é muito diferente. Com sensibilidade e inteligência você pode colocar a tecnologia para trabalhar a seu favor

No Japão, terra da organização sistemática e implacável, onde gravei muitos discos, o culto à demo chega a ser prejudicial, pois todos vão para o estúdio na intenção de mostrar que são capazes de superar em seus instrumentos o que foi programado na demo que passou por todos os músicos antes de se encontrarem no estúdio.


Para as 12 músicas de CosmeDamião, Ary Dias e eu ensaiamos 16 vezes ao longo de dois meses, e todo ensaio era gravado, ouvido e comentado antes de começarmos o próximo. Apenas piano e percussão, com pouquíssimos overdubs. Priorizamos a performance e não a produção. Se o seu trabalho é mais complexo do ponto de vista instrumental ou inclui vocais, considere realisticamente um tempo maior de preparação. Surpresas que resolvam magicamente problemas aparentemente crônicos de músicas acontecem no estúdio, sem dúvida, mas travações e dificuldades inesperadas também! Melhor não levar em conta a primeira e torcer muito para que a segunda, na figura lendária de "Seu Nicanor, o encanador", não dê as caras na sua gravação.

É interessante escolher o estúdio e o engenheiro dentro de toda uma estratégia que deve incluir gravação, edição, mixagem e masterização. Mas o leitor deve estar olhando para seu computador, periféricos e brinquedinhos sonoros de estimação, louco para perguntar "mas por que não posso gravar em meu próprio estúdio, sem a pressão do relógio e num ambiente relaxado?". Claro que pode, e toda a indústria do home studio, que vende milhões pelo mundo afora baseada nessa premissa, vai lhe agradecer muito, mas é importante levar em conta o tipo de música e os músicos que irão gravar com você.

Uma banda de cinco marmanjos mais cedo ou mais tarde vai se sentir enclausurada no espaço "aconchegante" do home studio de um dos componentes. Imagine essa concentração de testosterona esperando as edições das partes de baixo (elétrico, calma leitor!) de uma música: as possibilidades da tal atmosfera de "relaxamento" se transformar em claustrofobia, dispersão e baixa de produção são enormes!

Há partes do processo que podem ser trabalhadas em separado, como gravações de instrumentos virtuais, edições, processamentos de voz e escolha de takes de solo. Já outras demandam performance em grupo (espaço) ou conhecimento de técnicas de gravação (equipamento e conhecimento profissional) e renderão melhor se gravadas em estúdios profissionais.

No caso de CosmeDamião, nosso principal objetivo era tocar ao mesmo tempo e registrar a autenticidade das performances. Em meu querido Bariri, apesar da intimidade com o meu piano e de possuirmos equipamento suficiente à disposição, não teríamos todo o conhecimento e a isenção de um técnico profissional para tirar o melhor som dos instrumentos. O piano não seria o problema nesse tópico, mas o protótipo "caixambor" inventado pelo Ary especialmente para esse trabalho (veja a foto), com seus graves exuberantes, precisava ser registrado com fidelidade e qualidade.

Escolhemos o estúdio de Sergio Lima Neto, em Araras, por ter um piano Steinway de pedigree muito bem recomendado, pela atmosfera, já que é cercado pela beleza das montanhas e afastado das pressões urbanas, e por ficar a pouco mais de uma hora do Rio de Janeiro. Nos pareceu totalmente adequado para o nosso trabalho. E a escolha se mostrou tão certa que, em quatro dias de gravação, com a experiência a nosso favor, ótimo equipamento e, acima de tudo, o espírito altamente positivo de Sergio, gravamos 12 músicas completas para CosmeDamião.



Já no primeiro dia de estúdio entendemos a importância dos ensaios, e apesar de uma certa resistência minha, decidimos gravar sem click, para, assim, aproveitar ao máximo as variações de dinâmica essenciais à nossa música, que se baseia na performance. Como contrapartida a essa decisão, diminuíram as possibilidades de edição, uma vez que não haveria grid, e o take anterior não estaria "por baixo" do último e pronto para ser utilizado, com se faz com tanta facilidade em gravações referenciadas a clicks. Pela mesma razão, ficavam afastadas as possibilidades do "composites" ou "melhor de três", como é conhecido lá em Bariri o processo em que se grava três takes da música e o resultado final é a escolha do melhor momento de cada take para cada seção da música.

Sem elaborar muito, acabamos usando a tradicional técnica de gravação de música erudita "cascade recording", em que o intérprete grava até o ponto da música que acha que está tudo ok e através de punch in continua a gravar desse ponto em diante.

Saber dosar o ritmo no estúdio é muito importante, e fazer uma tabela com a previsão de qual será a ordem das músicas e que instrumentos serão predominantes ajuda a todos ficarem sincronizados na sequência dos eventos da gravação. No cinema, isso se chama "plano de filmagem", e adaptei sem a menor cerimônia. Se você sabe o próximo passo, vai ficar muito mais fácil decidir sobre o melhor take, insistir na perfeição técnica ou optar pela expressividade ou mesmo parar para comer uma banana porque está precisando de potássio para reencontrar forças para gravar o vigésimo segundo take de Armando's Rhumba numa mesma manhã!

Editar cada detalhe no momento da gravação nunca é boa ideia. Em um contexto de muitos músicos é caro e demorado nas decisões e deve ser evitado, enquanto num contexto de poucos músicos não é necessário porque estes sabem o quanto melhor poderão (ou não) fazer em outro take ou no mais simples e tradicional punch in. Um bom trabalho de edição, que encontre equilíbrio entre autenticidade e atenção ao detalhe, traz qualidade artística e dribla a armadilha do "supermúsico quantizado", o Viagra das performances musicais da era digital.

Corrigir rumo à perfeição técnica ou manter a integridade artística da performance é mais uma decisão dentre tantas que o leitor deve ter percebido que enumerei nesse artigo. Digo, sem medo de errar, que elas vão desenhando o caminho musical do seu CD e talvez por isso esse seja o pedido de quem quer conhecer sua música além de um download digital com som de MP3 numa página de feissibuki ou outra rede.

Até aqui, foram quatro dias de dez da manhã até dez da noite para gravar 12 músicas ensaiadas por dois músicos ao longo de dois meses.

No próximo mês, vamos seguir no que você precisa saber para a mixagem, edição e masterização - a black art da parada -, que é onde tudo fica decidido antes de ir para a fábrica ser duplicado e chegar até o ouvinte. Claro, sua música pode ter downloads digitais de 70 países diferentes e milhões de cliques no YouTube, mas ela existir numa forma palpável, como num CD, talvez seja como muitos ainda a prefiram ouvir.

Todo o processo pode ser feito com menos dinheiro e mais organização do que parece de longe. Nesse estágio do CD, com as horas de gravação e liberação das músicas de outros autores, ainda estamos numa faixa de dois mil dólares.

Vejo você no mês que vem.

Fernando Moura é flamenguista, músico, compositor, arranjador e produtor musical, além de ex-fumante.
Visite www.myspace.com/fernandomoura.
 
Conteúdo aberto a todos os leitores.