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Revista Luz & Cena
Lugar da Verdade
Kit de primeiros socorros para o início de uma gravação
Enrico De Paoli
Publicado em 01/01/2004 - 00h00
A tecnologia de hoje fez a arte de gravar um disco ficar ao alcance de quase todos. Antigamente, na era do estúdio analógico, antes de se começar uma sessão, os procedimentos eram muitos. Hoje, a informalidade de um estúdio dentro de casa aboliu esse cuidado. Mas será que todos estão realmente prontos a apertar o botão vermelho e falar "gravandooo"?
Um projeto que começa errado tende a ir errado até o fim. Às vezes, uns cinco minutinhos a mais no início de uma gravação podem salvar takes inteiros - e salvar empregos.Vou usar esta página para relembrar alguns procedimentos de segurança antes de nossas próximas gravações.

Alinhamento

Originário da era analógica, este termo se refere, na maioria das vezes, ao alinhamento da máquina de gravação analógica, normalmente de duas polegadas e 24 canais. O famoso alinhamento é a quantidade de fluxividade magnética que a cabeça da máquina vai aplicar nas moléculas de ferro da fita. Quanto mais magnetismo, maior a relação sinal-ruído e maior a compressão de fita e a ênfase dos harmônicos gerados por ela. Naturalmente, cada tipo de fita tem um limite máximo de fluxividade antes de seu som virar distorção total e indesejada.
Além da fluxividade, no alinhamento verificam-se os níveis dos estágios de entrada e saída da eletrônica da máquina, para que esses fiquem compatíveis com os equipamentos a ela conectados (normalmente uma mesa de gravação e mixagem).
Ajusta-se também o BIAS, que é uma alta freqüência gerada durante a gravação com o objetivo de excitar as moléculas da fita para que elas fiquem mais sensíveis às ondas pequenas (altas freqüências).
Apesar de ser pouco comum, também existe alinhamento nos estúdios digitais. As interfaces 888 do Pro Tools, por exemplo, têm parafusos no painel frontal, onde se alinham os níveis de entrada e saída analogicamente. Dessa forma, o 0dbVU da saída e retorno da mesa analógica fica de acordo com o headroom da gravação digital e o retorno dela para a mesa analógica. A irmã mais nova, a Digi 001, tem o alinhamento das entradas 1 e 2 no painel frontal e das entradas 3 a 8 no software. Os níveis de saída são fixos, sendo +4dbu (0dB VU = 1,23 volts) nas saídas 1 e 2, e -10 dBV (0db VU = 0,316 volts) nas saídas 3 a 8.
Portanto, estar em dia com os níveis de operação de seu estúdio, antes de conectar qualquer coisa e sair gravando, pode significar uma economia de sons ruins na hora da mix, além de melhor aproveitar a relação sinal/ruído do seu projeto.

Time Code ou Sync (Sincronismo)

Sozinho, este tópico seria suficiente para encher o Lugar da Verdade deste mês. Aliás, daria alguns meses de assunto. Mas nem eu iria agüentar escrever, e nem vocês iriam ler... Então, para que nos encontremos aqui mês que vem, vamos falar de sincronismo o suficiente pra manter os projetos sincronizados (ou sincados).
Comecemos pelo famoso SMPTE (se fala símpti). Quem quiser dizer o nome completo, aí está: Society of Motion Picture Television Engineers. No nosso universo significa um sinal de sincronismo que carrega informações de hora, minuto, segundo e frames. O SMPTE nasceu para tornar possível o sincronismo de diversas câmeras em uma filmagem. Na verdade, se formos lá atrás, na época da Segunda Guerra, o time code nasceu para sincronizar as baterias de tiro. Assim como várias criações tecnológicas importadas da guerra para o nosso dia-a-dia, o time code não foge à regra.
Voltando à paz do estúdio e ao SMPTE: hora, minuto e segundo, todos sabemos o que são; já os frames se referem aos quadros da imagem em movimento de um filme ou de um vídeo. Como temos alguns tipos de formatos de imagem com números de frames variados, temos também vários SMPTEs, um para cada formato. A película tem 24 frames por segundo de filme. A TV ou vídeo europeu roda a 25 frames por segundo, de forma a ficar em sincronismo redondo com a ciclagem da energia elétrica de lá: 50Hz. TV ou vídeo em preto e branco na América e no Japão rodam a 30fps (frames por segundo), referenciados ao AC de 60Hz. Hoje, o sincronismo nada mais tem a ver com a freqüência da rede elétrica, mas as tradições se mantiveram.
Quando a TV em cor surgiu, foi necessário rodar a imagem 0,1% mais lentamente para facilitar o sincronismo de cores. Então, em vez de criarem um código completamente novo, com números de frames diferentes, simplesmente desaceleraram em 0,1% os 30fps do preto e branco. Criou-se então o padrão 29.97fps, que nada mais é do que os 30 que já conhecemos, porém um pouquinho mais devagar. Queria conhecer o sujeito que achou que fazer isso facilitaria nossas vidas em alguma coisa, e apresentar o Luizão pra ele.
Bem, é aí que a coisa complica um pouquinho. Se o SMPTE foi criado para sincronizar filmes, vídeos e áudio, entre eles e referenciados a um relógio que já conhecemos, que marca as velhas e boas horas, minutos e segundos, e temos um SMPTE a 29.97, que na verdade significa 30fps (frames por segundo), só que rodando 0,1% mais lento. Isto significa que, depois de algum tempo, o relógio do nosso filme ou da nossa música vai ficar fora do relógio do nosso pulso ou da nossa parede. Para consertar essa discrepância, criaram o formato 29.97 drop-frame. Estava muito simples - sempre há um gênio no mundo, que acha que todos deviam ser como ele -, então cria algo que só ele acha conveniente.
Vamos tentar entender esse tal de drop-frame. Vimos que rodando sincronizadamente com um vídeo americano qualquer temos 30 frames de imagem a cada segundo, porém este segundo é 0,1% mais lento que aquele segundo que já conhecemos. Então esse tal de drop-frame faz com que, de vez em quando, alguns números sejam pulados na contagem dos frames. Assim, no final de uma hora de tempo corrido, o nosso SMPTE 29.97, que estaria em 108 frames, seria o do relógio G-Shock do nosso pulso marcando 00:59:56:12. Com essa recontagem dos frames, passamos a marcar a hora certa. Essa compensação é feita da seguinte forma: pula-se os primeiros dois frames de cada minuto durante a contagem - somente nela, pois eles existem e estão lá, à exceção dos minutos terminados em zero. Então, nos primeiros dez minutos, 9 × 2 frames são pulados, num total de 18. O mesmo ocorre nas dezenas seguintes. No final de uma hora, 18 × 6 frames (ou 108 frames) são compensados pela rotação do relógio 0,1% mais lenta. Note que 29.97 drop e 29.97 não-drop são o mesmo código com o mesmo número de frames, apenas contados diferentemente para compensar o relógio normal.
Falei que não ia me estender no assunto SMPTE, mas me empolguei. Não tem jeito. É um mal necessário. Definitivamente vale a pena saber sobre sincronismo - toda hora alguém leva uma rasteira dele.
No mundo do áudio, o padrão é sincronizar fitas com fitas, ou com sequencers, ou com MDMs (modular digital multitracks: ADAT, DA-88 etc), ou com DAWs (digital audio workstations como Pro Tools, Digital Performer, entre outros), sempre com o SMPTE em 30fps. É o padrão. É simples, redondo, fácil de calcular e reflete o tempo real da música. A galera que trabalha com jingles, trilhas e DVDs tem que sofrer mais um pouquinho e usar 29.97 porque é esse o formato dos frames do vídeo NTSC.
Se você fizer toda trilha de um comercial, baseando-se numa referência de 30fps, quando você sincronizar o áudio para o filme, seus eventos de áudio sairão de sincronismo numa razão de 0,1%. Também é possível mudar a afinação na mesma razão, como explicado acima. A agência de publicidade vai adorar você.
CLICK e GRID em sincronismo musical
Um procedimento extremamente simples e eficaz é ter sua música toda enquadrada para os compassos do seu software. Quem trabalha apenas com música eletrônica faz isso automaticamente ao programar o sequencer. Agora, quem trabalha com gravação acústica tem que gerar o click no programa em que o áudio está sendo gravado (Pro Tools, Cubase, Logic, Digital Performer). Assim, a música respeita totalmente os compassos do software, facilitando muito, mas muito mesmo qualquer edição do tipo copy e paste a ser feita mais tarde, como ocorre naquelas edições do tipo "copia esse refrão para os outros", coisa que quase ninguém faz, porque todo mundo toca e canta bem demais, e jamais admitiria um refrão idêntico ao outro (risos).
Se a música for gravada com o click que o baterista gerou da sua bateriazinha eletrônica na hora de gravar as bases, esqueça. A base nunca mais entra em sync com os compassos do seu computador. Aí sim você vai precisar tocar e cantar do início ao fim. Ficou preocupado? Então, já sabe: click do software. Na dúvida, leia isto tudo de novo. Vale a pena.
Se você está gravando em máquina analógica, parabéns! Você é um raro felizardo. Principalmente se sua máquina for boa e estiver alinhada. Mas, e o click? A máquina não gera click. Mais uma vez: não deixe o batera sacar aquela bateria eletrônica e mandar o click pra você. Mais tarde, certamente você vai querer transcrever essa base para um computador por diversos motivos. E é bem interessante que esta base possa ser encaixada nos compassos do computador. Portanto, na hora de gravar na fita, use o click, sincronizando com o SMPTE da máquina analógica. Senão, nunca mais sinca.
É, me estendi tanto nestes dois assuntos, que deixei de falar de diversos outro itens a serem checados. Mas tenho certeza de que não nos faltarão oportunidades. Também tenho certeza que, se estes aí acima forem seguidos, já economizarão muitas noites em claro, úlceras, dores de cabeça, quedas de cabelos, demissões etc.
Gravem tranqüilos.
Abraços.
Enrico De Paoli é engenheiro de estúdio e PA. Concluiu o último lançamento dos Titãs (Como estão vocês?) em parceria com o engenheiro Vitor Farias, e agora está gravando o novo disco de Djavan.
enrico@rio.com.br

 
 
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