Fui convidado para trabalhar na transmissão para a rádio e internet do último show do U2 no Brasil, que foi realizado no dia 13 de abril, no estádio do Morumbi, em São Paulo. A minha função seria atender ao técnico deles, que faria a mixagem de dentro de uma unidade móvel contratada para o evento.
Quando descobri que ficaria três dias trabalhando no local do show e que teria acesso a todo o equipamento, resolvi parar de escrever o artigo no qual estava trabalhando para aproveitar a oportunidade de produzir um material diferente e interessante.
Nos "longos" três dias que passei no estádio preparando o equipamento para a transmissão, algumas coisas me chamaram bastante a atenção. Primeiro, o monumental tamanho do palco. A segunda coisa foi a organização da estrutura da produção. Tanto a produção nacional quanto a internacional funcionaram perfeitamente bem. E a terceira que muito me surpreendeu foi a atenção e presteza por parte dos profissionais de áudio que acompanham a banda.
Além disso, outro ponto impossível de não se notar é a redundância dos equipamentos. Todos os principais equipamentos são replicados por questão de segurança: consoles, ears, instrumentos, alguns amplificadores de guitarra e microfones de voz. Uma das primeiras perguntas que fiz quando iniciei meu trabalho foi se todo aquele equipamento era realmente necessário. E a resposta foi bem clara: "sim, a maioria dos equipamentos reserva já precisou ser usada em algum momento da turnê".
SISTEMA DE SONORIZAÇÃO
A empresa responsável pelo sistema de sonorização é a americana Clair, antiga Clair Brothers, constituída em 1966 e que vem trabalhando com o U2 há mais de 30 anos. O responsável pela mixagem é o veterano, simpático, muito atencioso e também irlandês Joe O'Herlihy, técnico da banda também há mais de 30 anos (o que lhe dá o direito a carro exclusivo com motorista para chegar e sair do estádio...). Ele também possui o cargo de diretor de áudio da turnê, além de ter ajudado a desenvolver o sistema de sonorização para este show. Em resumo, tudo o que é e está relacionado a áudio deve ter sua bênção e aprovação.
O console utilizado para a mixagem do show é um Digico SD7, e, sim, também existe um console reserva posicionado exatamente ao lado do "principal", na house mix. Com um input list que chega a 112 canais, uma grande quantidade de músicas no repertório que pode ser executada e também a necessidade de várias mudanças de mixagem durante estas músicas, um console digital com todas as facilidades de automação parece ter sido uma escolha óbvia.
Depois de muito tempo trabalhando com consoles analógicos, entre elas a Clair na década de 1980, Midas XL4 e ATI Paragom nas décadas de 1990 e 2000, na turnê
passada, Vertigo, a banda começou a utilizar as mesas da Digico, no caso, uma D5. Para esta nova turnê, entretanto, foi escolhida a SD7, que é atualmente a mesa mais completa da fabricante.
Mesmo com um console digital que possui grande quantidade de processadores e efeitos, muita coisa é usada por fora, tais como o compressor Manley Voxbox, na voz principal e na voz reserva; o compressor Avalon 737 nos vocais; o compressor Summit DCL-200 nas guitarras; e os Lexicom 480L, Lexicom PCM 90 e TC Eletronic 2280 para os efeitos.
Segundo os técnicos da empresa de sonorização, o sistema montado para o show é basicamente o mesmo em quase todos os estádios mundo a fora, e é dividido em L/R frontal, L/R traseiro, L/R lateral esquerdo, L/R lateral direito, tendo-se sempre como referência a visão que a house mix tem do palco. A única diferença que ocorre em alguns casos é a instalação de torres de delay posicionadas na linha da house mix.
Vale aqui um parênteses: mesmo tendo a turnê o nome de 360º, existe uma "frente" do palco para onde a banda está voltada quase que a todo o tempo. O que acontece é que os integrantes da banda podem andar em volta do palco, que é, sim, circular, e a bateria, em determinado momento, gira 180º, se voltando para o que seria a parte de trás do palco.
Já vi algumas imagens deste show em estádios menores, onde o palco é colocado no meio do gramado, o que dá, assim, uma impressão real de 360º. Porém, em estádios maiores, quando o palco não é colocado exatamente no meio do estádio, e sim mais perto de onde fica a grande área em um campo de futebol, torres de delay então reforçam a cobertura sonora, principalmente nas arquibancadas mais distantes do palco.
Isto foi exatamente o que ocorreu no estádio do Morumbi. Com o palco um pouco mais recuado, as torres de delay foram instaladas para reforçar a cobertura sonora das grandes arquibancadas do estádio, sendo a estrutura de sonorização a seguinte:
PA Principal - voltado para a house mix
72 caixas Clair i5 (para as médias e altas) e 72 caixas Clair i5b (para os graves), com quatro linhas de elementos pendurados por lado, sendo que:
- Duas linhas de cada lado - na parte de fora do array, com 18 Clair i5S para tocar os graves.
- Uma linha de cada lado - na parte do meio do array, com 18 Clair i5 (que reproduzem bateria, baixo teclados e efeitos pré-gravados).
- Uma linha de cada lado - na parte de dentro do array, com 18 Clair i5 (que reproduzem voz, vocais, guitarras, violões e efeitos).
PA Secundário - voltado para o lado oposto do PA principal
48 caixas Clair i5 (para as médias e altas) e 48 caixas Clair i5b (para os graves) em quatro linhas de elementos pendurados por lado, sendo que:
- Duas linhas de cada lado - na parte de fora do array, com 12 Clair i5S para tocar os graves.
- Uma linha de cada lado - na parte do meio do array, com 12 Clair i5 (que reproduzem bateria, baixo teclados e efeitos pré-gravados).
- Uma linha de cada lado - na parte de dentro do array, com 12 Clair i5 (que reproduzem voz, vocais, guitarras, violões e efeitos).
Esta divisão permite que duas colunas inteiras separadas toquem programas diferentes: bateria, baixo e programações de teclados em uma, guitarra, voz e vocais em outra, possibilitando, assim, uma maior clareza e inteligibilidade do que está sendo reproduzido. O endereçamento para estas caixas é feito por meio de saídas auxiliares nos consoles de PA.
PA lateral - do lado esquerdo e do lado direito
Para cada um dos lados foram colocadas 32 caixas Clair i5 (para as médias e altas) e 32 caixas Clair i5b (para os graves), com duas linhas de elementos pendurados por lado, sendo:
- Uma linha de cada lado - na parte de dentro do array, com 16 Clair i5S (para os graves).
- Uma linha de cada lado - na parte de fora do array, com 16 Clair i5 (para as médias e altas).
Para os dois PAs laterais, a mixagem é feita no padrão L/R normal.
Além de todo este sistema, pude notar dois sistemas de subs diferentes e ainda um sistema de Front Fill que eram distribuídos da seguinte maneira:
- 72 caixas S4 (modelos antigos usados pela Clair) colocadas debaixo da passarela que circunda todo o palco. Estas caixas estavam espaçadas uns dois metros entre elas e sempre de duas em duas (uma à frente da outra), sendo que as duas, apontadas para a frente, provavelmente fazendo uma figura cardióide, projetavam o som para a frente.
- 24 caixas BT218 (novos modelos de sub), que foram colocadas diretamente abaixo do palco para fazer o reforço de graves na parte exatamente à frente do local onde a banda toca praticamente o tempo todo.
- 24 caixas FF2, que servem como front fill, foram posicionadas exatamente em cima dos BT218 e ajudavam a reforçar a sonorização das médias altas exatamente à frente do palco, onde existia uma grande área VIP.
Como mencionei anteriormente, no caso do Morumbi foram utilizadas três torres de delay: uma central, colocada atrás da house mix, com duas linhas de oito caixas modelo i-DL, e duas laterais, na mesma linha da house mix, com uma linha de oito i-DL em cada. Todos estes grupos do sistema de sonorização têm como referência para o alinhamento de tempo o centro do palco, sendo que todas as medidas são tomadas a partir desta referência.
Todas estas caixas (Clair i5, Clair i5b, S4, BT218, FF2 e i-DL) foram desenvolvidas e produzidas pela própria empresa, e os amplificadores eram uma mistura de Lab Gruppen PLM 10000Q e PLM 14000, além de uma grande quantidade de PowerSoft K10.
SISTEMA DE MONITORAÇÃO
Todo o sistema de monitoração e vários outros equipamentos usados neste show foram posicionados embaixo do palco, o que, à primeira vista, é uma visão realmente impressionante. Além de ser tudo muito apertado e com vários cabos passando por todos os cantos, não é um bom lugar para se andar confortavelmente se você tem mais de um 1,85 m de altura...
No monitor, são três técnicos e três consoles (na verdade, seis, se contarmos com os de back-up). São duas Digico SD7, uma para a monitoração do cantor e outra para a monitoração do guitarrista, e uma Avid Profile que faz a monitoração do baixista, do baterista e de um tecladista que fica fora do palco (neste caso, a sua posição é exatamente embaixo do palco, junto com todos aqueles outros equipamentos).
Todo o sistema de monitoração e vários outros equipamentos foram posicionados embaixo do palco
Da mesma maneira que acontece no PA, no monitor também são utilizados alguns compressores, equalizadores (principalmente valvulados) e efeitos externos (um sobre o qual eu nunca tinha ouvido falar, e que é usado por todos os técnicos, é o Bricasti M7), quase sempre no processamento dos canais de voz, guitarras e violões.
Como as mesas estão posicionadas exatamente embaixo do palco, e não existe um contato visual direto com os músicos, na frente de cada console existe uma tela dividida em quatro, com a imagem de cada um dos integrantes da banda. Além disso, os roadies que ficam perto dos músicos também têm contato direto com o técnico de monitor e podem pedir para que qualquer ajuste seja feito.
Vários microfones de ambiente são espalhados pelo palco e mixados para os músicos conforme a sua posição no palco, possibilitando, assim, que eles consigam ter uma imagem sonora de onde estão naquele determinado momento.
Outra coisa interessante que vi foram dois microfones shotgun posicionados na frente da pedaleira de guitarra e apontados para os amplificadores deste mesmo instrumento. Eles são usados para captar o som ambiente destes amplificadores e depois enviá-los para a via de monitor do guitarrista, possibilitando que o músico consiga ter um som ambiente do que ele esta tocando.
Captação dos instrumentos
Realmente, não vi nada muito fora da normalidade em termos de microfonação. São utilizados microfones comumente encontrados no nosso dia a dia de trabalho, sendo que a única coisa que chamou realmente a minha atenção foi a utilização dos Shure SM 58 nas guitarras. Eu esperava o uso de um microfone mais específico, porém, pelo que me disseram, este foi o microfone que conseguiu reproduzir os timbres procurados.
De resto, pude ver coisas como Shure 52 no bumbo, Shure 57 nas caixas e em um ou outro amplificador de guitarra, Shure SM 98 em uma outra caixa, AKG 451 no contratempo e no ride, AKG 414 nos microfones de over e Sennheiser 421 nos ton-tons e nas caixas de baixo, além de Shure 58 UR na voz e de um headset para os vocais da guitarra e da bateria.
Para os instrumentos em linha são utilizadas direct box ativas Countryman Type 85 e Radial JDV, enquanto para os violões e linhas de baixo são utilizados Avalon U5.
Vamos ao que interessa: e o som?
Pude ouvir o PA tocando em três situações completamente diferentes. Duas sem a plateia, durante a passagem de som, e uma durante o show, e cheguei a três conclusões diferentes! A primeira delas foi quando o assistente do técnico de PA estava ouvindo um CD instrumental e o SPL não passava de 90 dB. Pude perceber, neste momento, a nitidez do sistema e uma cobertura - principalmente das médias altas - muito coerente no gramado (não cheguei a ouvir das arquibancadas).
Pude notar também um "ponto cego" exatamente em frente a cada uma das quatro garras que suspendem toda a estrutura do palco. Este ponto, nem o PA principal e nem o PA lateral conseguiram cobrir perfeitamente.
A segunda vez que ouvi o sistema foi durante a passagem de som feita pelos roadies. Os quatro tocam muito bem e executam com perfeição várias músicas que fazem parte do repertório da banda. Porém, desta vez, o técnico da banda estava no controle, e por duas músicas o volume ficou bastante alto, chegando a passar dos 115 dB. As altas frequências estavam bastante "ardidas", e as torres de delay pareciam reproduzir apenas frequências acima de 6 kHz. Mas depois soube que todo aquele volume estava apenas "secando" os falantes da chuva do dia anterior...
Durante o show, o volume desceu para níveis mais confortáveis, talvez uns 100 dB, com picos de, no máximo, 110 dB. Notei, entretanto, que a cobertura dos subs não era perfeita: havia pequenos buracos na plateia, mas nada que prejudicasse o sistema. A resposta do público foi bastante positiva em relação ao show, e pela reação das pessoas na pista, nas cadeiras e nas arquibancadas, todos estavam ouvindo muito bem o som.
A mixagem dos instrumentos é bem clara e, o que é ainda melhor, alguns detalhes que não são muito realçados nos discos ganham mais atenção ao vivo. Desta forma, sempre ouvimos algo novo, como um detalhe de guitarra ou uma frase de teclado que na mixagem original pode ter ficado um pouco escondido e que, ao vivo aparece mais. Porém, sem tirar as características da mixagem que todos conhecem.
Um detalhe que não pude deixar de notar foi que a voz do Bono parece ser extremamente equalizada, pois quando ele conversa com a plateia, sem música ao fundo, o timbre fica claramente "processado". Porém, dentro da mixagem geral, principalmente quando são acrescentados o ótimo reverb e pelo menos dois delays com tempos diferentes, a voz se encaixa perfeitamente dentro da base.
A voz do Bono parece ser extremamente equalizada, pois quando ele conversa com a plateia, sem música ao fundo, o timbre fica claramente "processado"
O resultado final é excepcional, bastante acima dos shows internacionais que tenho visto nos últimos anos, apesar de achar que shows desta magnitude podem se tornar maiores que a própria banda (já tinha tido esta impressão na última passagem deles por aqui). Por vezes, por causa de toda a estrutura do show, que quase não nos permite identificar a banda dentro do imenso palco, me peguei olhando mais para o incrível telão do que para o palco em si.
Transmissão para o radio e internet
O estúdio móvel contratado para fazer a captação do som foi o do Epah Estúdios (casa paulistana que é tema de matéria dessa mesma edição da AM&T), que recebeu antecipadamente um esquema feito pelo pessoal da Clair. Esse esquema, além de determinar qual equipamento deveria ser utilizado, também mostrava a necessidade de se gravar e reproduzir 112 canais. Depois de algum tempo perdido, descobrimos que os equipamentos pedidos não funcionariam da maneira que eles desejavam, então algumas modificações tiverem de ser feitas.
A ideia era que o técnico da banda responsável pela transmissão, no primeiro dia, utilizasse os áudios já gravados em um show anterior para começar a preparar a mixagem, fazendo todas as automações necessárias no console do caminhão (uma Avid Profile).
É claro que este cronograma não funcionou. Primeiro, por alguns problemas técnicos na instalação do equipamento, e, depois, por causa de um dilúvio que caiu em São Paulo na noite anterior ao show. O resultado é que tudo que poderia ter sido feito em dois dias de forma tranquila, foi concluído em uma manhã e uma tarde no dia do próprio show.
O técnico, Declan Gaffney, que mixou a banda para esta transmissão ao vivo, é o mesmo que acompanha a banda com um estúdio móvel, sempre montado em uma sala do estádio, possibilitando que a banda possa fazer gravações ou ensaios durante a turnê. Além disso, ele também foi responsável pela mixagem de várias músicas do último álbum, No Line On The Horizon.
Mesmo ele conhecendo a mesa com a qual iria trabalhar, adaptando-se rapidamente ao seu funcionamento depois de perder certo tempo organizando os canais que seriam ou não utilizados e escolhendo os plug-ins de processadores dinâmico e efeitos (dois tipos de reverb, um curto e um longo e dois tipos de delay, uma pequena dobra e uma repetição maior), ele começou o processo de "escrever a automação" de todas as músicas no console.
Esta passagem de som virtual foi feita utilizando-se o show imediatamente anterior (do dia 10 de abril), gravado direto da mesa de monitor, o que nos possibilitou importar os audio files para dentro de uma sessão de Pro Tools e tocá-los através da mesa. Desta forma, conseguimos simular com bastante realidade o que aconteceria durante o show, inclusive com os canais de plateia.
A meu ver, o mais importante de tudo é que este técnico realmente conhecia muito bem as músicas e tudo o que aconteceria em termos de mixagem em cada uma delas, tornando o seu trabalho muito mais fácil.
No final, ficou claro que a audiência também gostou do resultado. Tanto é que, logo após o show, Gaffney começou a receber e-mails repassados do site oficial da banda (
www.u2.com) com mensagens de fãs de várias partes do mundo elogiando o trabalho.
Definitivamente, para mim, valeu como experiência.