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Revista Luz & Cena
Entrevista
Phil Ramone
Fábio Henriques e Ligia Diniz
Publicado em 17/07/2009 - 00h00
Dos primeiros concertos em grandes parques à revolução digital, o produtor Phil Ramone parece ter um dedo em tudo o que de mais importante aconteceu no universo da música nos últimos 50 anos. Nascido na África do Sul, Ramone logo se mudou para Nova York, onde começou a ter aulas de violino. Da música para o áudio e a produção, foi um pulo mais rápido do que se poderia imaginar.

Hoje já são 14 troféus Grammy - incluindo um prêmio técnico pela contribuição à indústria fonográfica - e uma lista quilométrica de participações em discos, filmes, peças de teatro e o que mais se puder imaginar envolvendo som e música. Phil Ramone esteve sempre na vanguarda ou acompanhando de perto todas as novidades. Longe de ser um homem apegado ao passado brilhante, ele é um incentivador das novas mídias e maneiras de ouvir e propagar música, do CD à internet.
Quando a lista é de artistas que trabalharam com Ramone, também é preciso muito papel e caneta: entre muitos outros estão Ray Charles, Burt Bacharach, Bono Vox, Ray Charles, Chicago, Natalie Cole, Bob Dylan, Gloria Estefan, Aretha Franklin, Etta James, Quincy Jones, BB King, Madonna, Paul McCartney, Liza Minnelli, Sinead O'Connor, Luciano Pavarotti, Peter, Paul and Mary, Andre Previn, Carly Simon, Paul Simon, Frank Sinatra, Rod Stewart, Stevie Wonder, James Taylor, Bruce Springsteen, Bonnie Raitt, Gladys Knight, Sheryl Crow, Chaka Khan, Dianne Reeves, Queen Latifah, kd Lang, Michael Buble, Dave Koz, John Legend, Juanes e Fito Paez.
Atualmente, para transmitir toda a sua experiência - e muitas outras - ele está finalizando, ao lado do produtor Quincy Jones, o documentário Recording - The History od Recorded Music, que será exibido em sete partes, cobrindo de 1887 até hoje - tudo em Dolby 5.1. Vale dar uma olhada no site www.recording.tv.
No Brasil para a Convenção da AES, em maio deste ano, Phil arrumou um tempinho para conversar com a M&T sobre seu começo na profissão, suas experiências mais marcantes e outros assuntos caros a quem está envolvido com áudio e música. Confira a entrevista a seguir.


Como você entrou no complexo universo da música e da indústria fonográfica?

Comecei como engenheiro, bem novo, porque eu era músico. Era violinista clássico. Quando eu trabalhava tocando na TV, em todos os intervalos ia até a técnica e ficava pensando como seria legal ser diretor. Esse foi meu primeiro sonho, ser diretor ou produtor em cinema e TV. Mas eu era uma criança trabalhando com música na TV e então me botavam sentado do lado do técnico de áudio, e eu ficava olhando o trabalho dele, fascinado. Naquela época, usavam-se booms, porque microfones normais não eram permitidos na TV tradicional. Então eu ficava vendo o técnico de áudio conversar com o operador do boom, tentando chegar o mais próximo possível dos músicos, enquanto o diretor dizia "sai da minha cena, sai da minha cena".  Minha relação com o áudio começou assim: como fazer música numa indústria - a TV - que não se importa com o áudio.
Havia os Beatles e outros artistas, que iam a shows de variedades e tal. E o mais importante era sempre a imagem; o som vinha em segundo lugar. E mesmo assim havia um grupo de pessoas totalmente apaixonadas e dedicadas ao áudio. Eu fui convidado por um engenheiro para ir a uma convenção da AES quando tinha uns 14 ou 15 anos [a AES existe desde a década de 1940] e eu me lembro de ficar olhando para tudo muito impressionado. Eu queria entender como tudo funcionava, mas não sabia onde poderiam me ensinar. Havia consultores, como um cara que eu conheci que era violinista, mas também era o engenheiro chefe da orquestra sinfônica da NBC. Era impressionante, porque o que ele fazia era uma microfonação clássica: dois microfones em estéreo, apesar de aquilo ser transmitido em mono.


Era numa formação Decca Tree?

Não, ele usava um par de AKGs, que eram chamados de microfones batom [lipstick mics], porque a câmera não se sentia agredida por eles. Imagem antes, som depois. E, naquela época, a orquestra da NBC tinha os melhores músicos e só ficava atrás da Filarmônica. Eu, criança, cheguei a acompanhar algumas dessas transmissões. Hoje em dia há DVDs com gravações desse tempo e está lá a imagem antiga, em preto e branco, mas o som não é terrível. E vemos ali os dois AKGs e mais o microfone do solista - era tudo o que eles podiam usar! Como é que se faz um som assim, com tão pouco?


Quando você começou a colocar a mão na massa?

Eu fui trabalhar em um estúdio, e a negociação era: o engenheiro de lá me ensinaria como gravar e mixar, e eu, em contrapartida, tinha que tocar as cordas e fazer overdubs feito um maluco. A parte mais difícil no aprendizado foi aprender a cortar um disco. Acredite ou não, cortar um disco era a diferença entre o que a gente achava que soava bem no estúdio e o que a gente demonstrava depois. Nessas demonstrações, em algum apartamento da cidade, eu conheci muitos engenheiros importantes, que depois me chamavam para participar de suas sessões - isso tudo quando eu tinha uns 17 anos.
Eu aprendia assistindo às gravações, fazendo perguntas e vendo os engenheiros posicionarem os microfones. Nenhum engenheiro permitia que outra pessoa que não ele mesmo posicionasse seus microfones. E eu ainda trabalho assim. Eu tenho assistentes, mas eu sou o cara que coloca o microfone onde eu acho que ele deve estar. Isso porque era eu a subir a escada para achar o sweet spot onde eu deveria colocar o microfone para captar a seção de cordas. Nós até tínhamos muitos microfones, mas não tínhamos entradas suficientes na mesa para fazer o trabalho de uma maneira mais fácil, como acontece hoje.


A quantidade de canais mudou tudo, né?

Hoje, a gente microfona tudo,  a seção de cordas inteira, cada violino, cada violoncelo. Imagina gravar, com poucos microfones, uma banda de rock com uma orquestra de 40 pessoas e fazer com o que o público consiga ouvir tudo. É como chegar ao final de um rali sem ter metade do motor. O que temos que fazer é saber posicionar os microfones, e isso é a coisa mais difícil de se ensinar. É preciso entender música e saber o que está saindo do palco. Eu sempre faço meus alunos, antes de posicionarem os microfones, ouvirem a música do meio da plateia, antes mesmo de mexerem em qualquer coisa, prestando atenção em como cada som de cada instrumento chega. Porque em áudio nada é natural. Hoje em dia nós deixamos o som natural usando booths ou colocando os músicos em estúdios diferentes, sem interagirem!
Se eu tiver um condutor que realmente se importe com a música, que faça tudo soar bem onde ele está, eu coloco um microfone na cabeça dele! É muito impressionante, quando a gente para pra pensar nesse trabalho. Não é só a microfonação, é também toda a arte da interação, de saber como falar a um músico.


E de lidar com problemas de equipamentos...

É, mas quando você pensa nisso, o que é mais importante? Já trabalhei com pessoas que não tiram os olhos da tela de mixagem, quando deveriam estar focados nos músicos e ouvindo o som. Para o músico, é bom ver que você está sorrindo e que está prestando atenção ao que ele está fazendo. Eles se sentem mais seguros. O contrário é como estar no consultório e o médico estar fumando enquanto você está sendo examinado.


Nunca dê uma gargalhada quando o músico está tocando na sala de gravação...

Isso mesmo, você está certo. Uma vez eu estava num estúdio, o técnico deu uma risada e a cantora começou a chorar. Ela perguntou: "Você está caçoando de mim?".


Você tocou no ponto principal da profissão. Às vezes as pessoas pensam que os engenheiros de som lidam com equipamentos, mas na verdade nós lidamos com pessoas.

Eu sempre ensino o que aprendi de um engenheiro, quando estava começando: você tem menos de dois minutos para entender o que está acontecendo, por causa dos custos. Ele ia lá, desligava os monitores e me dizia: você tem que ser capaz de equalizar uma orquestra com os medidores, lembrando o que você ouviu, quão alto a bateria estava tocando e como estava soando a base. É radical, claro, mas quer saber de uma coisa? Até hoje eu sou capaz de equalizar uma orquestra assim, sem ouvir o bumbo durante dois dias inteiros.

Nos anos 70, o pessoal começou a fazer isso: uma combinação de o que estamos buscando com a quantidade de drogas que há no estúdio. As combinações não tornavam mais fácil a tarefa de entender quem está na capa do disco e qual o seu papel dentro do estúdio. Nós somos a arma de aluguel. E eu trabalhei com ótimas pessoas, mas há sempre muita impaciência.

Quando eu comecei, a gente fazia quatro músicas em três horas. Isso era o esperado, incluindo as performances de todos. Pelas leis do sindicato, não era permitido cantar mais de uma vez sem ser obrigado a pagar a orquestra inteira por cada uma das vezes. Então isso é uma coisa muito importante de se ensinar: a interação. Porque o músico tem que saber se você está prestando atenção, se está ouvindo tudo direito.


O músico conta com você para julgar se o som está saindo bom ou não...

Por muitos anos, nós gravamos sem headphones para os músicos porque eles, os fones, eram muito ruins. Então a acústica da sala tinha que ser muito boa. Eu fiquei conhecido por colocar a seção rítmica e os sopros próximos, mesmo quando havia um espaço grande. Me perguntavam sobre o vazamento e eu dizia: "O vazamento não me incomoda, desde que eles consigam ouvir o ritmo e o tempo". As pessoas não costumam entender o que é o tempo. Eu tento não desencorajar as pessoas, mas sempre aviso que os monitores que estão no chão vão mudar completamente a maneira como cada um dos músicos ouve o outro e, portanto, como vai tocar seu próprio instrumento.

Eu, o George Martin e umas outras pessoas montamos umas superfícies de mixagem para cada músico, um sistema individual de monitoração, e é engraçado assistir, porque eles simplesmente não sabem mixar. Eles deixam o próprio instrumento todo aberto e o resto dos instrumentos todo baixo. A gente perguntava: "Você está tocando a bateria. Não quer ouvir o baixo?". E ouvia: "Não, não quero".


Como você lida com artistas difíceis?

Eu tento conhecê-los melhor, conversando depois da sessão, só nós dois. Eu pergunto: "Como eu posso te ajudar? Estou aqui por sua causa, para você". Mas é algo que funciona pelos dois lados: o artista não pode estar pensando na briga com a mulher dele. E nós não podemos trabalhar pior porque o assistente deixou de trazer o café. Eu digo ao artista: "Eu sou seu médico. Você não precisa fazer nenhuma pose nem vestir nenhum personagem comigo. Se você não me der sua alma, eu não vou poder te dar tudo o que você é capaz de produzir". Muitas vezes a solução não é falar sobre os problemas e, sim, fazer o artista perder a consciência do que o está incomodando. Mas não é mesmo um trabalho fácil. E na verdade nem tem que ser. Eu já encerrei sessões no meio, dizendo:  "É melhor ir pra casa agora e recomeçar depois. Não quero gravar sem você aqui. A faixa pode até ficar boa, mas não vai caber em você".


Qual você acha que foi a grande mudança na indústria de gravação desde que você começou?

A gravação em multicanal mudou tudo na história do áudio e da música. Quando só tínhamos três ou quatro canais, tínhamos que fazer tudo caber. Eu fazia uma orquestra em estéreo, um canal para a voz e um canal para ambiente ou para um solo. No minuto em que fomos autorizados pelo sindicato a gravar a voz mais de uma vez, comecei a fazer o canal da seção rítmica, ou o canal dos sopros, ou os violões. Seis canais. Todos mono, na verdade. Quando tivemos 16 canais, quanto ao áudio, foi realmente a grande mudança. Mas os Beatles gravaram tudo em quatro canais... Ou em dois gravadores de quatro canais. E o meu período de aprendizado foi bem compatível com o deles.
Outra grande mudança foi a chegada dos transistores. Eu tinha um estúdio em que tudo era valvulado, mas a mesa era transistorizada e ela tinha o seu próprio problema de hiss. Mas, quando a tecnologia evoluiu, a mistura das duas coisas, válvula e transistor, era muito produtiva. Da mesma maneira que é hoje a mistura de analógico e digital. As máquinas de fita iam aquecendo durante o dia, e o som ia mudando com o calor, de maneira que, quando a gente ia mixar, não sabia o som que iria encontrar. Depois começou o não natural - ou novo natural, chame como quiser - e os estúdios viraram salas mortas, com vidro entre elas.


Mas isso já mudou um pouco, certo?

No final dos anos 80, filmes de pessoas como George Lucas, e as trilhas de John Williams feitas em Londres reintroduziram uma certa autenticidade na ideia de misturar duas mídias, juntando a praticidade de edição de uma com o calor da outra. E, no começo dos anos 90, essa coloração do áudio mudou muito. Eu me tornei uma espécie de líder de um novo formato, baseado em fibra ótica, e fiz um disco do Sinatra [Duets, de 1993, em que Frank Sinatra gravou duetos com diversos artistas, que adicionaram sua participação a vocais de Sinatra pré-gravados]. A gente não tava tentando enganar ninguém, mas a imprensa chegou a me acusar de estar usando gravações antigas do Sinatra e afirmando que eram novos takes. E eu dizia: "Olha, venha comigo a um show dele e, se for um bom show, você vai ouvi-lo em seu auge". Afinal, nos anos 50 não havia gravadores multipista. Eram dois canais ou mesmo mono. Naquela época, estéreo era um cara com alguns microfones extras gravando em outra sala. Então a grande mudança, na minha vida, foi a saída estéreo nos LPs, e a transmissão em FM.


Você chegou a trabalhar em rádio?

Minha primeira transmissão em FM estéreo foi uma transmissão ao vivo em estúdio. Nessa época, nos anos 70, a criminalidade era grande em Nova York, as pessoas estavam sendo assaltadas em todos os lugares. E as gravadoras estavam saindo da cidade. Mas havia salas de gravação muito boas na cidade e ninguém sabia o que fazer com elas. Então eu propus a um estúdio fazer uma experiência com FM, transmitindo um show ao vivo uma vez por mês a partir da sala de gravação. O primeiro artista a participar foi Elton John. Depois tivemos Roberta Flack e outros artistas maravilhosos, e o programa acabou virando um fenômeno nacional. A única coisa ruim é que nós acabamos introduzindo as gravações bootleg, porque os shows duravam tanto quanto eu e os artistas queríamos, e o pessoal gravava...


E sua experiência em shows? Fale um pouco sobre isso.

A tecnologia fez muita diferença também nos shows... Não havia mais espaço suficiente em cafés e pequenas casas para o sucesso de alguns artistas. Chegava a época dos estádios. Eu trabalhei como engenheiro de som em um show da Barbra Streisand no Central Park com um caminhãozinho apenas para os amplificadores. Isso foi em 1968. Esperávamos 15 mil pessoas, vieram mais de 100 mil. Esse projeto no Central Park depois cresceu mais, com o show de Simon & Garfunkel em 1981, que reuniu 500 mil pessoas. Depois do show, tudo o que víamos e ouvíamos eram as pessoas saindo com seus gravadores e ouvindo o show que havia acabado de acontecer. Por falar em bootleg... Eu gosto de lembrar desses eventos, porque eles mudaram a maneira de trabalhar das gravadoras e a distribuição, porque o público saía com seu próprio souvenir dos shows. Isso me faz lembrar a frase que muitos grandes músicos, como [o saxofonista] Phil Woods, me disseram: "Isso tudo é sobre a gente, não esqueçam! A música vem antes!".


Houve algum dia em que você pensou "meu deus, eu sou parte da história; tenho que começar a fazer anotações sobre o que estou vivendo porque isso será lembrado algum dia"?

Aprendi desde cedo que eu não era especial, que eu era parte de algo que poderia crescer. E as coisas mudam muito, eu sempre me surpreendo quando leio em algum artigo de 10 ou 20 anos atrás o que eu disse. As pessoas costumam dizer que eu tenho uma grande habilidade de prever coisas, mas na verdade eu sou extremamente curioso e interessado. Estou sempre em busca de o que fazer para que o mundo possa ser mais pacífico, sempre por meio da música. Sempre penso que, se eu juntar 50 pessoas loucas para fazer música, talvez elas acabem se abraçando. Já fiz coisas assim; já coloquei, junto com Quincy Jones, um argelino e uma israelense em cima de um palco para fazer um dueto (Khaled e Noa, respectivamente), cantando Imagine em hebraico, inglês e árabe. Isso foi em 2002, durante uma reunião do Fórum Econômico Mundial, em Nova York. Todos ficavam dizendo que não daria certo, que alguém acabaria sendo morto. Mas aconteceu e foi muito bonito. A música era o centro das atenções. Isso não quer dizer que no minuto seguinte, alguém não vá disparar uma arma do lado de fora, mas a música carrega em si essa possibilidade de paz.


Existe algum momento preferido em sua carreira? Ou muitos deles?

Acho que a aventura de fazer música onde ela não é esperada é uma das minhas maiores motivações. Nunca é fácil gravar música, mas há desafios especiais. Com a Barbra Streisand no Central Park, por exemplo, o cachorro de um dos engenheiros mordeu um policial. Isso é algo que simplesmente não pode acontecer em Nova York. E também não pode acontecer de você estar bêbado quando deixar seu cachorro atacar um policial! Mas tudo fazia parte de um momento especial, e nós estávamos muito nervosos, porque o sistema de cabos havia se partido e estávamos costurando os cabos, rezando para que funcionasse... Essas coisas só acontecem uma vez em uma vida.
Eu produzi um show do Pavarotti na Itália, em um parque em Modena, em que houve uma tempestade de granizo. Caíam blocos de gelo que pareciam saídos de uma geladeira! Tivemos que tirar pilhas e pilhas de gelo de cima da house mix, da mesa... Era uma orquestra com 70 músicos, algumas centenas de inputs, imagina tudo isso sob granizo. E o ar condicionado da unidade móvel de gravação havia quebrado por causa do calor em outro desses shows [Pavarotti fez uma série de oito concertos com convidados, entre 1998 e 2000]. Era tanto calor que a gente realmente temia que os gravadores derretessem. Mas, enfim, essas são as experiências que têm mais espaço dentro da minha cabeça. Quando acaba e tudo deu certo, e é um sucesso, temos que agradecer a alguém no céu que fez aquilo funcionar.
 
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