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Revista Luz & Cena
Lugar da Verdade
O ovo ou a galinha?
Sobre o quando o dia da mixagem deixou de ser a última chance
Enrico de Paoli
Publicado em 01/06/2004 - 00h00
Desde que comecei a acompanhar a evolução tecnológica da indústria de gravação e produção de áudio, tenho notado que os hábitos e métodos de trabalho têm evoluído de acordo. E também têm evoluído os resultados sônicos das produções fonográficas. Por exemplo: antes do surgimento dos seqüenciadores MIDI, não existia a função Quantize, que posiciona as notas precisamente nas subdivisões do tempo da música. Então, duas coisas eram diferentes antes do tal Quantize: os músicos tocavam mais no tempo (ou um menos pessoas se classificavam como músicos), e as variações do tempo eram consideradas musicais (quando eram musicais, claro) em vez de serem tomadas como erros. Após o surgimento da música seqüenciada e quantizada, o mercado ficou muito mais acostumado a ouvir notas roboticamente perfeitas, no tempo dos compassos.
Então, tempo deixou de ser um problema e muitos dos que não eram músicos tiveram a chance de se tornar instrumentistas (!) com uma ajudinha do computador. Mas e a afinação? Nada que não tivesse solução com o aparecimento de uma empresa chamada Antares. O produto lançado por ela, que logo passou a ser tão importante quanto um microfone, veio a ser conhecido como Auto-Tune. Chegou em forma de plug-in para o Pro Tools e depois com suporte para vários outros sistemas de gravação. Existe até mesmo uma versão stand-alone hardware (um rack sem a necessidade de ser usado junto a um computador). O Auto-Tune realmente faz milagres: faz a voz de cantores como eu (!) soarem como um diapasão! Mesmo assim, eu não ando cantando muito. Tenho passado mais tempo nos faders e no mouse.
Essas evoluções mencionadas acima são óbvias. Trouxeram consigo resultados e mudanças de hábitos claros no que ouvimos por aí. Aliás, não só mudanças de hábitos, mas também mudanças de padrão, de expectativa de uma perfeição que muitas vezes ultrapassa a natureza humana. Mas temos vivido uma outra evolução que tem gerado um novo hábito ou vice-versa. Este não é tão comentado nem mesmo tão usado. Trata-se da mixagem em etapas, a mixagem por acumulação. Ou seja: o polimento de uma mixagem até chegar à perfeição.
Até pouco tempo atrás, a mixagem era talvez o momento mais delicado e possivelmente mais glamouroso de uma produção fonográfica. Era comum, ou ainda é, as pessoas perguntarem: "Vai mixar aonde?"; "Com quem?"; "Ah é? Que mesa tem lá?". Qual foi o engenheiro ou técnico de gravação que nunca ouviu a pergunta: "É você que vai mixar?".
Se eu tivesse que explicar a razão dessa elevação de status de uma mixagem com uma simples frase, eu diria algo como última chance. Pois é, a mixagem é nossa última chance. Se algo foi gravado num tom muito grave ou muito agudo, é na mix que temos a última chance de consertar. É lá que podemos aumentar uma notinha que muda tudo, ou tirar aquela notinha que estraga tudo. É na mixagem que podemos fazer uma música ótima virar um evento de ser ouvido. Mas é também na mixagem que podemos fazer uma música ótima se tornar insuportável porque não dá pra entender o que o cantor diz; o contratempo faz nossos ouvidos sangrarem e a caixa da bateria faz com que pisquemos os olhos a cada 2 e 4, de tão insuportavelmente alta e estalada.
Quem nunca fez o teste do toca-fitas do carro antes de encerrar uma mix? Nossa... Momentos cruéis eu passei dentro de carros, avaliando uma mix esperando por ser terminada, ouvindo em um cassete que roubava todos os reverbs por falta de agudos e indicava mais uma lista de problemas - ninguém sabia se o problema realmente era o cassete do estúdio, a fita cassete, o som do carro ou a própria mixagem.
Sim, já existia Recall. Aliás, já ele existia há vários anos, mas somente em mesas de meio milhão de dólares e em estúdios que de tão caros precisavam de ao menos dois clientes diferentes por dia para se sustentar. Então, uma vez a gente fora do estúdio, nossa mix estava encerrada, e o estúdio seria todo "desmontado" pelo próximo cliente. Um recall naquele estúdio, além de custar mais um dia e muito dinheiro, nunca fazia com que a mix voltasse totalmente igual por variações das estabilidades da eletrônica analógica e da habilidade do assistente.
Hoje temos recall em tudo. Para quem é novo no mercado, recall é a maravilha que nos permite salvar tudo em uma mesa, efeitos, eqs, automação, patch etc, etc, etc. Qualquer sistema de computador hoje, de Pro Tools a Sonar, Mac ou PC, qualquer uma desses tem recall invisível ao teclar um command-S. Então podemos ir mixando durante o projeto. Ouvindo em casa, no carro (e até mesmo em um quarto de hotel). Cada vez que um bumbo mais alto do que o mundo nos importunar, temos a chance de, no dia seguinte, abrir a sessão e dar uma abaixadinha nele. Hoje não há mais a necessidade do INCRÍVEL DIA DA MIXAGEM .
Não sei se essa maravilha de hábito surgiu por causa da tecnologia, ou se essa tecnologia surgiu por causa dessa real necessidade. O que importa é que agora temos uma nova grande dificuldade: quando é que termina a mix?

Enrico De Paoli é engenheiro de estúdio e PA. Projetos recentes incluem : TITÃS, Como estão vocês, Carnaval carioca 2004 e, atualmente, em estúdio com Djavan.enrico@rio.com.br

 
 
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