Cartas
Guitarra, dinâmica e HotSound
Sólon do Valle
Publicado em 27/11/2007 - 17h05
Saudações, gran mestre Sólon!
Muitos conhecem-me por Ferdinando e grande honra é pois redigir esta mensagem ao célebre ícone do áudio. Muito apreciei a volta das boas análises de equipamentos em uma publicação de áudio nacional, e Música & Tecnologia retornou como em tempos da saudosa Som Três.
Dúvidas, no entanto, trouxe à tona a edição em que foi publicada a análise do amplificador HotSound Digilite 6400. No mundo cibernético [grupo de discussão no Orkut], tema virou de formidáveis discussões e ao expressar-me em uma delas, me foi insistentemente recomendada vossa pessoa na elucidação de um impasse que contraria alguns de meus conhecimentos. Explico: em argumentação com o consultor Anderson, da Hotsound, este afirmou e lhe atribui a afirmação que copio a seguir - 'um amplificador de instrumento do tipo amp de guitarra não pode ser desse tipo (com compressão de potência), mas quando a guitarra está no meio da música essa regra já não vale mais'. Longe estou de ser um expert no assunto, mas há 50 anos trabalho e estudo a ciiência do áudio e discordei terminantemente desta afirmação. Assustou-me ainda ser ela atribuída a vossa pessoa, mas muito insistiu Anderson que o consultasse diretamente para minha compreensão, por isso lhe escrevo.
Continuo, porém, cético, pois entendo de forma diferente e seguiu o debate conforme reproduzo:
- Ferdinando, em réplica - Dizer que o fator de crista de um instrumento amplificado isoladamente é passível de compressão, mas tal regra perde sua valia em meio a uma música, é um equivoco! O que se passa é o contrário e explico-me - Uma guitarra exige menos suporte de um amplificador quando solo do que quando na música. Pois então se pode uma guitarra sozinha ser comprimida, certamente ela será também comprimida em meio a uma música, visto que o fator de crista da música na qual ela se inclui, sempre menor, será que o da guitarra sozinha.
- Anderson, em tréplica - Acho que me expressei mal, talvez. O que falei é que um amp para instrumento (uso guitarra como exemplo) deve sim ter potência contínua, primeiro porque, por serem amps de baixa potência, a grande maioria dos amps de guitarra fica dentro da faixa de 10 a 50W. Eu não acredito que um Digilite vá realmente comprimir uma guitarra devido a sua alta potência, mas se o músico der uma nota fixa usando um pedal de sustain, por exemplo, e o amp. estiver no seu limite de potência, aí ele vai comprimir, fora isso jamais.
- Ferdinando, em teimosia - Desculpe-me a insistência, mas deve convir que se o amplificador de guitarra carece de potência contínua e este som será captado via microfone ao amplificador de PA, o amplificador de PA tem obrigação de possuir igual ou superior sustentação que a do amplificador gerador original. Não importa se a potência é alta ou baixa na fonte e tal afirmação seria completamente desprendida de lógica. Acredito que o amigo está a confundir, mas aberto estou a correções! Indifere o amplificador gerar 8W ou 8kW caso estes perdurem imaginário 1 segundo e o instrumento careça de potência por imaginários 2 segundos. Mas acato com respeito vossa sugestão e repassarei vossa afirmação em íntegra ao mestre Sólon.
- Anderson, em defesa - Ferdinando, volto a falar que, o fator de crista da música é muito maior que de uma guitarra, pergunte ao próprio Sólon, uma música orquestrada por exemplo tem de fator de crista, na casa de dezenas de dB, correto? Então pela sua lógica se colocar uma guitarra na orquestra esse fator de crista acaba? Acho que não, na orquestra o fator de crista será de 20dB (exemplo) com ou sem guitarra.
- Ferdinando - Desculpas repetidas, mas continua a assassinar as leis do áudio. Talvez esteja a agir desta forma pois pensa que o que digo macula de alguma forma o formidável produto Digilite, mas insisto que não falo sobre Digilite e sim sobre a afirmação completamente transfigurada de que pois uma guitarra pede uma sustentação de potência quando solo e outra menor quando em música. Isto é um absurdo e insistir em tal afirmação é incompreensível e inadmissível! Por isso ambos dividem grande dificuldade em explicar tal fenômeno, seria mesmo inexplicável se ocorresse! Encaminhado já foi o assunto ao mestre Sólon e aguardo resposta. Meus saúdos!
Ferdinando Andreotti
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Caro Ferdinando:
É incrível como, passado meio ano daquela análise, este assunto continua polêmico e o pior, como minhas declarações continuam sendo mal interpretadas e impropriamente utilizadas.
Na realidade, eu, você e o Anderson estamos todos corretos. O que falta é colocar as coisas, ou melhor, os instrumentos, em sua devida proporção. Devo lembrar que, além de engenheiro, sou - nas poucas horas vagas - músico, e por coincidência, guitarrista.
Aprecio os diferentes estilos dos diferentes mestres da guitarra, desde Charlie Christian até Yngwie Malmsteen, passando por Hendrix, Beck, DiMeola, Page, Delmiro, Montgomery, Horta, Satriani, Gomes, Harrison, Lubambo, Vaughn, Clapton, Biglione e por aí Vai. Alguns deles tocam com grande dinâmica, produzindo elevados fatores de crista. Outros, sendo o maior destaque Hendrix, servem-se do volume farto e do feedback para produzir notas sustentadas de muitos segundos. Ainda citando Jimi, vale citar que ele utilizava nos shows dois amplificadores Marshall valvulados, de 100 watts cada.
No entanto, o que escapou a você e ao Anderson é que, no PA, o som captado desses monstros valvulados - mesmo nos momentos de solo de notas longas - não necessariamente utilizava a plena potência do sistema! A potência máxima ficava (e ainda é assim, quase 40 anos depois de Woodstock) para o bumbo e a caixa da bateria, e para uma ou outra pancada no baixo - sons esses que, como se sabe bem, duram décimos de segundo.
Portanto, vamos recapitular:
1.A guitarra nunca utiliza a potência máxima do sistema;
2.A potência máxima só é solicitada por ataques percussivos de curta duração, produzidos por instrumentos da cozinha.
Com isso, conclui-se - e espero que se conclua também essa já desagradável discussão - que a guitarra só precisa de potência contínua de seu próprio amplificador. No contexto da música, ela não produz potência contínua máxima no sistema. E, mesmo que se usem notas longas e feedback, quem solicita altas potências é a cozinha, que se caracteriza por altos fatores de crista - isto é, grandes picos e baixos valores médios de potência.
O que eu afirmei é que um amplificador com compressão de potência não seria ideal para amp de guitarra. O que, aliás, pode ser discutido: alguns amps, como o célebre Fender Bassman '59, usam válvula retificadora, que produz compressão de potência, chamada pelos músicos de sag. Alguns até curtem; outros, tratam de substituir as retificadoras por diodos de silício.
Muita potência e saúde!
Sólon do Valle