Tatiana Queiroz
Publicado em 28/05/2007 - 00h00
Ele desceu o morro de São Carlos, onde nasceu e foi criado, a fim de cantar não só o samba. Em mais de 30 anos de carreira, Luiz Melodia ficou conhecido pelo seu ecletismo: transitou pelo rock, bossa nova, samba, pop, funk, reggae, hip hop, baião, jazz e bolero. Mas, de uns tempos pra cá, o cantor alimentava o desejo de gravar um disco só de sambas.
Montou um repertório que inclui composições de Geraldo Pereira, Ismael Silva, Jamelão, Cartola e de seu pai, Oswaldo Melodia, de quem herdou o sobrenome artístico, e entrou no estúdio da Biscoito Fino, sua nova gravadora, para registrar o 12º disco de sua carreira.
Com o título de Rádio Melodia, o disco foi produzido pelo arranjador e instrumentista Humberto Araújo, que já dirigiu shows, arranjou músicas e fez parte da banda de Luiz Melodia. As vozes foram gravadas pelo técnico Gabriel Pinheiro e as bases, por Rodrigo de Castro Lopes, que também está à frente da mixagem.
São 14 faixas que resgatam a sonoridade dos sambas das décadas de 50 a 70. Em Choro de Passarinho, de Renato Piau, Rubens Cardoso e Euclides Amaral, Melodia divide os vocais com Jane, sua esposa. O grupo vocal As Gatas canta em A linda Tereza, uma das duas composições de seu pai que Melodia mostra no novo disco.
Dando suporte à voz de Melodia, Silvério Pontes (trompete), Alessandro Cardoso (cavaquinho e banjo), Charles da Costa (violão), Humberto Araújo (saxofone e flauta), Netinho Albuquerque e Rodrigo Jesus (percussão). O disco conta ainda com as participações de Leandro Braga (piano), Paulão 7 Cordas (violão 7 cordas), Cláudio Jorge (violão), Rômulo Duarte (contrabaixo) e Julinho Moreira (bateria).
RESGATANDO O SAMBA DE OUTRORA
Humberto Araújo: O processo de produção começa, a meu ver, com o que o artista quer fazer. A gente tem que entender que o disco é um produto do artista, não um produto do produtor. O produtor é quem vai viabilizar as idéias do artista em termos de música e de comando dentro do estúdio, o que inclui arranjos, os músicos, o que vai ser e o que não vai ser dentro do plano do artista.
O Luiz queria que o disco tivesse uma sonoridade antiga de instrumentos de samba, de maneira de tocar. Ele já tinha uma idéia bem sucinta do que queria. Até por ser um repertório que está sendo burilado ao longo de anos. O disco é fruto do show que ele estava fazendo com a banda do Silvério Pontes, do qual saíram muitas das músicas que foram gravadas.
O que fiz como produtor foi pegar alguns arranjos que já estavam prontos e adaptá-los até mesmo para poder adequar harmonicamente o projeto a essa idéia de samba antigo. Para as músicas que não estavam no show, fiz novos arranjos.
Orientei os técnicos a gravarem o som do jeito que ele é. Levei alguns discos para o pessoal ouvir no estúdio para mostrar o que eu queria e o que não queria que fosse feito, entre eles, o Batucada Fantástica, do Luciano Perrone, que é um apanhado de levadas afro-brasileiras de uma maneira geral, só com craques da percussão.
Nesse disco do Melodia, não há instrumentos, técnica, jeito de tocar, tremolos, afinação e suingue atuais. Os instrumentos de percussão são todos em couro, não há nenhum com pele de nylon. Não há nenhum instrumento elétrico. Tratei tudo com a sonoridade de como era antigamente. O Netinho Albuquerque, pandeirista, levou um adufe, que era do tio dele, o Jorginho do Pandeiro, um dos maiores pandeiristas da história. Abrimos o panorâmico do adufe, colocando-o no L e, no R, o repique de anel. Ficou com um suingue alucinante.
FUGINDO DO SOM DE GAFIEIRA
Humberto Araújo: Na Biscoito Fino eles gravam um som muito real dos instrumentos. O disco tem uma unidade sonora absurda. O resultado é um disco bem limpo e cristalino, sem embolação e cruzamento. Consegui fazer uma coisa dançante, mas sem aquele sotaque muito forte da gafieira, caracterizado pelo excesso de metais. Nesse disco tem os metais, mas eles estão bem discretos, fazendo linhas bem definidas, simples e trabalhadas. Não há nada com reverb exagerado e os planos dos instrumentos estão muito bem estudados. É um disco de samba elegante.
CAPTAÇÃO AO VIVO NAS TRÊS SALAS DO ESTÚDIO
Rodrigo de Castro Lopes: Gravamos todos tocando ao mesmo tempo. No estúdio temos uma sala grande de gravação, onde gravamos surdo, cavaquinho; uma pequena, onde fica o piano de cauda, onde gravamos o violão; e uma sala mínima, onde gravamos o baixo ou o pandeiro. Quando era base com bateria, ficava a bateria na sala principal, o baixo na sala mínima e o piano na sala pequena.
Colocávamos na mesma sala o cavaquinho e o surdo com anteparos, porque assim dá para diminuir o vazamento com a equalização, se for o caso. Gravamos o surdo com um par de microfones, um AKG D 112 e um Mouse da Blue, e um microfone de ambiente na sala, o Earthworks. Mesmo com o anteparo pegava um pouco do cavaquinho, que foi captado com o Neumann KM 184.
Na sala onde fica o piano do estúdio, captamos os violões sempre em XY estéreo com um par de Neumann U 87. Em algumas músicas, quando o violão foi gravado sozinho, colocamos um par de AKG C414 TL2 de sala. No baixo acústico, usamos o Blueberry. Normalmente, costumávamos colocar no baixo, no cavalete, um microfone omnidirecional também, mas, nesse disco, testamos o som e estava bonito com um microfone só. O baixo não é tão pesado para dar espaço, para o surdo aparecer.
De sopros, em geral, teve flauta, saxofone, trompete ou flugelhorn ou trombone ou bombardino. Normalmente, eram três sopros por música. Para captá-los, coloquei os microfones próximos. Na flauta, foi usado um KM 184; no sax, um U 87 e no trompete um Electro-Voice RE20.
Eu segui a sonoridade requisitada pelo produtor Humberto Araújo. Ele pediu que colocasse os três sopros formando um triângulo e, no centro, um par coincidente de omnidirecionais. Assim não tem muito tamanho de estéreo, mas o som fica muito natural. Buscamos uma concepção antiga de mixagem e assim era como se mixavam as músicas na década de 70. O sopro entra baixinho no fundo, não é para dar peso no arranjo.
POUCA BATERIA E MUITA PERCUSSÃO
Rodrigo de Castro Lopes: Não há muitas músicas com bateria, a maior parte do disco é em cima de percussão. Eu gosto de usar microfone dinâmico quando se usa vassourinha na bateria porque ele soma com o over, onde usei o Neumann U 87, trazendo corpo, pois se você usar um condenser, ele puxa muito o ataque, o brilho, mas acho que fica um pouco vazio. Eu gosto de usar o Electro-Voice RE20 perto da pele. A caixa é uma soma desses dois microfones. No tom-tom, Sennheiser MD421; no surdo, MD441; no bumbo, AKG C414 TL2. Eu tenho gostado de usar condenser no bumbo, fugindo do padrão, que é gravar com dinâmico.
Nas percussões mais agudas, em geral, gravei com condenser de cápsula pequena, KM 184, microfonado por baixo porque o atrito acontece onde está a mão, que é embaixo. Nas percussões mais graves usei um U 87.
Gravamos o repique com microfone de cápsula pequena para pegar mais o agudo e menos o grave porque no grave já tinha o tantã, o surdo, o baixo, entre outras coisas. Então pegamos o grave do repique do tamanho certo para a mix. Tentamos com dois microfones, um KM 184 no alto e um U 87 na boca. Terminou que usamos só o de cima, o KM apontando na diagonal para a quina do instrumento, pegando tanto o tapa no couro quanto a batida na madeira.
Nesse disco inteiro, buscamos sempre conseguir um som de samba antigo. Isso a gente fez aproveitando as ambiências. Todas as percussões, quando foram gravadas depois, sempre tinham um microfone de ambiência, normalmente o Earthworks. Tudo o que foi colocado como dobra tinha um ambiente.
VOZ LEVEMENTE COMPRIMIDA
Rodrigo de Castro Lopes: A voz foi gravada pelo Gabriel, que usou um Neumann U 87 passando no Vintech e depois no Avalon, dando uma pequena comprimida, já gravando a voz processada.
De prés, usamos o Avalon 737, o Vintech, o Millennia e os prés da mesa Euphonix. Em geral, nos instrumentos em que queríamos mais corpo, com timbre mais natural, usei o Millennia. Nos que eu queria mais transparência, o Avalon. E nos que queria um som mais penetrante na mixagem, o Vintech.
De reverbs, usamos t.c. electronic 6000 e Lexicon 480L. A plataforma de gravação foi Pro Tools HD rodando num Mac G4.
Buscamos valorizar as ambiências. Não fazer muita condução, muita diferença mecânica. A única coisa que mudamos de vez em quando foram os panorâmicos. Não tem muito estúdio entrando na história. É uma captação mais realista.
REPERTÓRIO
01 - Contrastes (Ismael Silva)
Sucesso na voz de Jards Macalé em 1977.
02 - Tive sim (Cartola)
Gravada originalmente por Cyro Monteiro.
03 - Dama ideal (Alcebíades Nogueira / Arnaldo Passos)
Imortalizada pelo mangueirense Geraldo Pereira, que registrou a canção em 1952.
04 -Papelão (Geraldo das Neves)
Gravada por Paulinho da Viola no disco A dança da solidão, de 1972.
05 - Chegou a bonitona (Geraldo Pereira / José Batista)
Gravada pelo sambista Blecaute na década de 40.
06 - Cabritada mal sucedida (Geraldo Pereira)
Gravada originalmente pelo próprio autor em 1953.
07 - O neguinho e a senhorita (Noel Rosa / Abelardo da Silva)
Noite Ilustrada e Elza Soares foram os primeiros a gravar a canção, depois interpretada por Elis Regina e Jair Rodrigues.
08 - Eu agora sou feliz (Jamelão / Mestre Gato)
Jamelão compôs e interpretou a canção, que posteriormente ganhou as vozes de Elza Soares e Maria Bethânia, entre outros.
09 - Rei do samba (Miguel Lima / Arino Nunes)
Gravada por Jorge Veiga no disco O caricaturista do samba.
10 - Recado que a Maria mandou (Haroldo Silva / Wilson Batista)
Outra eternizada na voz de Jorge Veiga no mesmo disco de 1959.
11 - Linda Tereza (Oswaldo Melodia)
Composta pelo pai de Luiz Melodia.
12 - Choro de passarinho (Renato Piau)
Inicialmente intitulada Choro alegre por Renato Piau, ganhou letra de Euclides Amaral e Rubens Cardoso , passando a se chamar Choro de passarinho.
13 - Nós dois (Luiz Melodia / Renato Piau)
A única canção composta por Melodia no disco entrou para a trilha da novela Bang Bang, da TV Globo.
14 - Não me quebro à toa (Oswaldo Melodia)
Mais uma tirada do baú da família Melodia.