Desde 2003 tocando juntos novamente, os remanescentes do MC5, lendária banda de Detroit (EUA) do fim dos anos 60, foram a atração principal do festival Campari Rock, em São Paulo. Wayne Kramer (guitarra), Michael Davis (baixo) e Dennis Thompson (bateria) fecharam o show do sábado, 13 de agosto, tocando com os convidados Mark Arm, do Mudhoney, e Marshall Crenshaw, artista solo nos anos 80, que supriram as faltas dos já mortos Rob Tyner (voz) e Fred Sonic Smith (guitarra). Dois dias antes do show, Kramer, um dos precursores da guitarra punk/heavy, falou a M&T do hotel onde estava hospedado na capital paulista, sobre recursos que usa em sua guitarra, como captação, amplificação e efeitos - e até sobre política, assunto sempre presente na história da banda. Ele tornou a falar com a revista logo após o fim da apresentação, na Fábrica da Lapa.
Já tendo passado por modelos como as Gibsons ES-335 e Les Paul, Gretsch Tennessean e as Fenders Esquire e Telecaster, Wayne Kramer elegeu outra Fender, a Stratocaster, como seu instrumento predileto, embora sinta falta do captador humbucker (duplo) no centro do corpo - o da Strato é single coil (simples). Essa questão ele pretende resolver com uma parceria que, segundo disse a M&T, está negociando com a fabricante.
"A idéia [ainda sem previsão de lançamento] é produzir um modelo Wayne Kramer Stratocaster, customizada de acordo com características que estou escolhendo, da mesma maneira que usava no início dos anos 70. Ela terá as mesmas características eletrônicas, a mesma paleta, e captador humbucker, como o da Gibson, no centro. Além disso, existe o conceito visual, retomando a forma como a usava pintada na época em que fizemos o MC5, com o desenho da bandeira americana", contou o músico, cuja primeira guitarra foi uma Sears Silvertone.
A forma como Kramer orienta seu protótipo de Stratocaster customizada vem da época do MC5, quando costumava instalar captadores humbuckers Gibson na posição central de sua Fender. Ele fazia isto para poder ser ouvido diante do volume da Gibson que Fred Sonic Smith acabara de comprar - antes, Smith usava uma Mosrite, também single coil.
"Essa captação, caprichada no centro, proporciona um belo tom, chegado ao blues, ao mesmo tempo bonito e pesado, e sem problemas de excessos de agudos. É mais encorpado, dá sustentação e, de certa forma, até um alcance maior", diz, explicando que foi com esta captação que fez o memorável solo da versão de Looking at you, do LP Back in USA, em 1970, de certa maneira um dos precursores do som heavy metal - como dizia o vocalista Tyner ("Fomos metal antes do metal, punk antes do punk, até mesmo MC antes de Hammer").
Medo de pedais
Seguidor da linha de distorção em amplificadores consagrada por Eric Clapton na época do Cream, Wayne Kramer dispensa as pedaleiras quando toca ao vivo. "Praticamente todo guitarrista que eu vejo passa boa parte do show ajoelhado tentando fazer a pedaleira funcionar. Elas sempre quebram, os fios estão sempre se desconectando... Isso dá um trabalho enorme e arruína a performance ao vivo", opina. "Eu já tenho bastante trabalho me concentrando em passar de uma nota para outra", brinca.
A melhor maneira de esquentar o som da guitarra para Kramer ainda é "ajustar os controles do amplificador de forma que proporcionem um som poderoso. Isso dá uma dinâmica muito maior à música, entre os momentos mais calmos e os mais pesados, soa muito mais vivo. As stomp boxes tendem a comprimir o som, o que prejudica a execução, além de os ajustes dos amps serem muito mais simples de controlar".
A utilização de efeitos se dá de forma diferente entre estúdio e palco. "No estúdio, uso todos os recursos possíveis. Se não der certo, tento de novo, pois não estou tocando para um público e, sim, construindo o produto final. Mas ao vivo uso apenas um pedal Rat, para distorção, e, às vezes, um wah-wah, nada de stomp boxes". No show do Campari Rock, Wayne Kramer dispensou o wah-wah - que nunca foi mesmo característico do MC5 - e usou somente o Rat, da ProCo.
Amplificando guitarras e discursos
O primeiro choque que Wayne Kramer e Fred Sonic Smith tiveram com um amplificador foi em 64, quando estavam formando a banda e viram os Beatles usando valvulados Vox de 100 watts com quatro falantes de 12 polegadas.
Os futuros cinco da cidade do motor ficaram fascinados com a potência dos amps utilizados pelos quatro de Liverpool. Kramer e Sonic Smith compraram um Vox Super Beatle cada um, com o simples intuito de se tornar a banda a tocar mais alto em Detroit. Eles também davam mais distorção, por serem projetados para a Europa, que possui diferentes padrões de potência para instalações elétricas.
Três anos depois, a sensação passou a ser o set de amps da Marshall, dessa vez por influência de Jimi Hendrix e do Cream, para quem abriam diversos shows em Detroit. O MC5 comprou, então, seis Super Lead Heads de 100 watts para guitarra e mais dois de 200 watts para baixo.
Naquela época, a banda já tinha como empresário o agitador cultural e ativista político John Sinclair, fundador da Trans Love Energies, uma mistura de comuna hippie com produtora de arte alternativa, em Ann Arbor, cidade universitária próxima a Detroit. Mais tarde, ela se transformaria no partido White Panther - declaradamente uma alternativa multirracial à política dos panteras negras, mas, no fundo, bem mais chegado ao anarquismo.

John Sinclair levou os cinco músicos para morar na Trans Love Energies e os colocou para tocar em todo lugar que estivesse disponível na região. Foi a partir de Sinclair, também, que surgiram as idéias para o caráter político do MC5, como usar uma bandeira americana propositalmente avermelhada e com o desenho de uma folha de maconha em lugar das estrelas. Ele chegou a bolar uma apresentação em que um assassino fictício entraria no palco matando o vocalista Rob Tyner com balas de festim, depois de gritar algo como "seus comunistas, vão pro inferno".
O ator faltou à encenação e, em 1969, o MC5 já havia abandonado John Sinclair, acusando-o de roubar todo o dinheiro de suas apresentações - alegando que ele iria para a comunidade e, posteriormente, para o partido. Por sua vez, Sinclair foi tirar férias forçadas numa colônia penal por oferecer um baseado a um agente disfarçado do FBI. Da cadeia reagiu como nove entre dez militantes, xingando os músicos de "alienados".
Praga dele ou não, em 1976 Wayne Kramer também dançaria, condenado por tráfico de cocaína, vendo o sol nascer quadrado durante quatro anos.
Mesmo fora do ativismo, Kramer mantém a posição contra as políticas belicistas do governo de seu país. "O mínimo que se espera é que aprendamos com a história. Jamais imaginaria que, 30 anos depois, fôssemos ver outro Vietnã", disse, em relação à invasão do Iraque, que classificou como uma guerra "ilegal e imoral", devido às suas falsas justificativas, como a jamais constatada presença de armas de destruição em massa.
Se mantém os petardos antibelicistas na posição política, nos ataques sonoros hoje Wayne Kramer dá preferência à qualidade de tons sobre a potência. Essa mudança de comportamento, conta, foi o que fez trocar a preferência dos amps Marshall, "que eram incrivelmente inconsistentes e viviam estourando" pelos Fender Hot Rod. "Nos anos 60 e 70, a questão dos amps era a potência. Hoje, estou mais preocupado com a sonoridade. Então, a Fender tem essa linha de amps Hot Rod, com modelos como o Deluxe e o DeVille, este com dois falantes de 12 polegadas. O DeVille, particularmente, me proporciona um belíssimo tom. Essa é minha preocupação atual, e não mais fazer a platéia e eu mesmo ficarmos surdos", diverte-se o guitarrista.
Guitarrista não teve o amp predileto no Campari Rock
No show do Campari Rock, porém, Kramer precisou retornar ao Marshall, no caso, um modelo JTM 100. "Não trouxe meus amps e aqui eles não tinham o Fender, então usei o Marshall, embora não seja meu preferido", contou à M&T após a apresentação.
O mesmo modelo JTM 100 foi usado por Marshall Crenshaw (certo, é muita coincidência mesmo), que, ainda mais despojado, não ligou nenhum pedal a sua guitarra Paul Reed Smith.
Já o baixista Michael Davis ligou seu Fender Precision em um Ampeg, o mesmo que costuma usar em apresentações nos Estados Unidos.
Dennis Thompson tocou com uma bateria Tawe, da fabricação canadense, conforme disse Wayne Kramer à M&T, e pratos Zildjian.
Questionado sobre a existência de alguma banda recente que lembrasse o MC5, Wayne Kramer aponta a militância política do finado Rage Against the Machine, mas aposta mesmo no rapper Eminem. "Não que tenha algo de político, mas canta o que realmente pensa e sente, e sinceridade é o mais importante. Guitarras e a música do MC5 são para outra geração. Uma banda que tentasse ser como nós fomos, hoje, jamais teria chance", avalia.
Três discos bem diferentes
Gravados em 1968, 1970 e 1971, os três álbuns do MC5 traziam características completamente diferentes.
Kick out the jams (68) é uns dos raros álbuns de estréia registrados ao vivo. O argumento é que não havia outra forma de captar a energia da banda, que nos dois anos anteriores havia se destacado largamente na cena musical de Detroit e Ann Arbor. A publicação Almanaque CD & Vinil, de 1995, trazia comentário do jornalista mineiro Arthur Couto Duarte, contando que o produtor Jack Holzman e o engenheiro de áudio Bruce Botnick se valeram de um sistema inédito de masterização, com sulcos especialmente largos, para não perder os decibéis da altíssima gravação feita em duas apresentações no Grande Ballroom, em Detroit. Além de uma parceria com o pianista de jazz Sun Ra, Starship, o LP trazia pedradas como Come together (nada a ver com a homônima dos Beatles), Rocket reducer nº 62 e a faixa-título, em que uma palavra na introdução acabaria rendendo mais problemas ao MC5 do que todo o seu envolvimento político. A Hudson's, maior cadeia de lojas de discos de Detroit, se recusou a vender o disco simplesmente porque o vocalista Rob Tyner iniciava a música gritando "kick out the jams, motherfuckers!". A gravadora Elektra prensou uma nova edição do álbum com o palavrão sendo substituído por "brothers and sisters" ("irmãos e irmãs"), termo pinçado do discurso de abertura dos shows - que nem era declamado pelo cantor, mas por um camarada da Trans Love Energies. Não adiantou nada, porque a banda e o então empresário John Sinclair não eram de pôr o rabo entre as pernas e pegaram ainda mais pesado, publicando um anúncio em várias revistas locais dizendo "Fuck Hudson's". Foi o suficiente para a cadeia de lojas boicotar todos os discos da Elektra, que não hesitou em dispensar a banda.
Back in the USA (70) foi lançado pela Atlantic, que contratou o MC5 por recomendação pelo jornalista Jon Landau. Ele acabou produzindo a bolacha, uma espécie de volta às origens de rock básico. Durante as gravações, conta Arthur Couto Duarte no mesmo artigo, Landau pediu ao engenheiro Jim Bruzzesse para que o disco soasse urgente, o que praticamente eliminou os graves. Quem ouve Back in the USA percebe as conseqüências, em um rock sujo, porém sem peso, que não traduzia a força de execução do MC5. Ainda assim, há algumas ótimas faixas e excelentes solos de guitarra, com agudos cortantes, principamente em Looking at you e The human being lawnmover.
Produzido pela banda, com o auxílio luxuoso do engenheiro Goffrey Haslam - de bastante prestígio no staff da Atlantic - High time (71) é o álbum mais bem acabado do MC5 - e provavelmente um dos mais criativos do rock em termos de arranjos. Se antes as músicas eram creditadas ao grupo, dessa vez todas as oito composições foram assinadas individualmente. Além das guitarras, baixo e bateria, as gravações tiveram uma bela base de piano na visceral balada Miss X, de Wayne Kramer; piano, órgão e gaita tocada por Rob Tyner no rockaço Sister Ann e uma combinação certeira de percussão com naipe de metais em Skunk, as duas de Fred Sonic Smith. Future/now, de Tyner, era dividida em duas partes, sendo a segunda com uma soturna base que trazia até uma insuspeitado sintetizador. As guitarras também foram valorizadas: basta ouvir Poison, de Kramer. Elas combinam a potência que tiveram em Kick out the jams com a qualidade inédita de uma boa gravação em estúdio.
Wayne Kramer elege o terceiro e último disco da banda como seu predileto. "Nunca tivemos a intenção clara de gravarmos discos diferentes entre si. O que aconteceu foi que em High time pudemos aproveitar nossa experiência de banda que aprendeu a ser criativa no processo de gravação em estúdio, o que ainda não acontecia em Back in the USA. Por sua vez, Kick out the jams era ao vivo. Acho que estes fatores causaram as diferenças", avalia.
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Era dos carecas que elas (e eles) gostavam mais
Os sobreviventes dos MC5 mostraram, no palco do Campari Rock, que shows de reunião podem, sim, ser muito bacanas, principalmente no caso deles, em que a diversão e o prazer em tocar parecem sempre estar à frente de tudo, sem falar no, digamos, intercâmbio, com discípulos - desde 2003, já tocaram com a banda: Hellacopters, Ian Astubry (The Cult), Dave Vanian (Damned) e até o quase contemporâneo Lemmy Kilmister (Motörhead e ex-Hawkwind).
Wayne Kramer, Michael Davis e Dennis Thompson tocam seus instrumentos metendo a mão sem medo de ser feliz e sem pena de castigar os amps.
O careca Kramer tem estilo próprio, é um dos precursores do punk e do heavy, mas se identificam em sua Fender também os ruídos estourados de bandas de garagem dos anos 60, como Troggs e Seeds, o peso blues/psicodélico trazido pelo Cream e por Hendrix, e, por vezes, até um certo exagero na velocidade das notas.
O guitarrista é claramente o líder da banda, tomando o microfone para falar com o público, cantando solo em algumas músicas e, principalmente, se divertindo muito, a ponto de provocar a platéia rebolando na beira do palco.
O enrugado baixista Michael Davies espanca as quatro cordas de seu Precision com palheta e mostra classe, arriscando até um pequeno solo. O mesmo faz o baterista Dennis Thompson, grande destaque, com precisão e ataque perfeitos em uma batida seca e sem um resquício de vacilação.
Marshall Crenshaw cumpre bem seu papel de segundo guitarrista e terceiro vocalista. Aos 52 anos, ele é um pouco mais novo do que os, agora, MC3, todos beirando os 60. Crenshaw também sola quando há um espaço e faz dobra de cordas em contraponto com Kramer ao final de Kick out the jams, igualzinho ao que Fred Sonic Smith fazia em 68.
Mark Arm, vocalista e guitarrista do Mudhoney, deixa seu instrumento de lado e, desta vez, apenas canta - à exceção de Sister Ann, em que toca uma gaita bacana. Sem a guitarra, Arm, um garoto de 43 anos, se revela excelente mestre de cerimônias, mantendo a platéia ligada com trejeitos que simulam Iggy Pop - velho conterrâneo e parceiro dos MC5. Dá até um stage dive (quando o músico pula do palco sobre o público), embora não tenha a voz poderosa de Rob Tyner.
Provavelmente para facilitar o entrosamento com os dois substitutos, o set list privilegia as músicas de Back in the USA, mais simples. Sete canções do álbum são tocadas, contra cinco do Kick out the jams e apenas três do mais dificultoso High time, entre elas Miss X, que Kramer canta solo e improvisa a levada de piano na guitarra mesmo. Vale lembrar que a volta para o bis, com I want you right now se deu por verdadeira pressão do público.