Atravessando a rua no velho bairro de Pigalle, em Paris, famoso por seus shows eróticos e onde se situavam as principais lojas de música da França na época, três músicos brasileiros enfrentam a notória má vontade dos motoristas de táxi franceses, tentando convencer algum deles a levá-los de volta ao hotel, já de posse de seus novos brinquedos recém adquiridos depois de muitas pelejas linguísticas com vendedores: um teclado Yamaha DX9, (havia uma fila de espera de meses para se conseguir um DX7) um gravador Portastudio e uma bateria eletrônica Korg DDD1.
- "Será que foi jogo comprar isso aqui em Paris?" Pergunta o primeiro músico.
- "Se apertar, a gente vende lá no Brasil, que é novidade" respondeu o segundo.
- "Isso se o cara da alfândega não encrencar" Admitiu o terceiro.
- "Que nada cara, daqui em diante, a gente vai ter que comprar cada vez mais esses negócios e no futuro, todo mundo vai tocar um pouco de teclado, não tem volta" Finalizou o primeiro.
Por não falarem o idioma de Balzac, nossos heróis aturaram toda sorte de pragas e impropérios do taxista local que, depois de levá-los para um tour forçado pela região metropolitana de Paris, deixou-os no hotel com o coração aos pulos e um show inteiro de carnaval para tocar naquela noite.
Exemplo 2:
Cena 2 - Qualquer Lugar do Mundo 1998
O músico, apesar de não ser tecladista, nem grande conhecedor de linguagens de computador, dá os últimos retoques na trilha de abertura do vídeo institucional que vai ser sonorizado na manhã seguinte e fica pensando como seria possível trabalhar sem os seus brinquedinhos queridos que foram se multiplicando em seu lugar de trabalho como coelhos em festa. Já vai longe o tempo do DX9.
Sim, querido leitor, apesar de todos os protestos de que a eletrônica estaria tirando o trabalho de músicos profissionais, de que teclados "pasteurizam" (o que mais ofende é a possibilidade de ser "pastel"), as produções musicais e hordas de defensores de shows "Unplugged" (e o microfone?) é inegável que hoje em dia qualquer criação musical passa por uma associação de alguma espécie com a eletrônica e a Informática. Uma boa pergunta seria saber se o comodismo da satisfação imediata e a preguiça para a experimentação não estaria nos levando a uma techno-mesmice musical.
Ontem, no trajeto de quase uma hora a caminho do aeroporto num táxi (que não falava francês), percebi que todas as músicas que tocavam na FM sofisticada que o radio estava sintonizado, continham loopings, independentemente do estilo musical das composições.
No artigo deste mês, enquanto nos preparamos para mais uma maratona de perus (calma, leitor), castanhas e rabanadas, vou tentar relembrar algumas possibilidades de processos de composição que podem utilizar de maneiras diferentes as comodidades da tecnologia sem nos reduzirem ao denominador comum de batidas manjadas e presets de teclado.
Exemplo 3:
A Encomenda
Como sempre, vamos partir de uma situação real que, no caso, foi uma encomenda do Canal Futura para um CD de trilhas sonoras que servisse de estoque para a sonorização de chamadas, matérias e programas da emissora.
Existem alguns produtos desse tipo no mercado que atendem pelo nome de "Music Libraries" e que são CDs de música produzida com espírito musical pré-determinado para se encaixar como peça de sonorização de programas com temas específicos tais como: esportes, jornalismo, infantil, educação etc..
Alguns são realmente muito bons em termos de arranjo, orquestração e gravação. Muitos incluem a utilização de instrumentos acústicos de difícil emulação eletrônica como metais e guitarras, aproveitando as características mais típicas desses instrumentos como crescendos de metais, melodias com notas longas e distorcidas na guitarra etc.
As demos desses produtos freqüentemente provocam uma sensação que se situa entre a raiva e o despeito por parte de quem ganha a vida criando e produzindo trilhas para imagens, e nem sempre tem aquele orçamento bacana para utilizar os músicos que gostaria ou um estúdio com tratamento acústico decente.
O ponto fraco (que alívio, leitor!) da maioria dessas coleções é naturalmente uma certa falta de personalidade nos arranjos, o que é de certa forma intencional para aumentar o universo de possíveis compradores, mas que inviabiliza seu uso em propostas menos convencionais como é o caso do Futura.
Ficou decidido que para esse trabalho, faríamos 60 peças com duração entre 30 segundos e dois minutos, de acordo com as necessidades sonoras do canal.
Foram dadas várias referências musicais a mim e a meu parceiro Toni Costa, que incluíam Massive Attack, Tricky, Morcheeba, Fernanda Abreu, Chico Science e outros, sempre com a ressalva de que deveríamos manter sempre uma característica brasileira, pois trata-se de uma emissora educativa mantida pela Fundação Roberto Marinho em parceria com diversas entidades privadas, portanto, a ordem era uma espécie de moderno, ma non troppo.
Mais um briefing-charada, hein leitor? Para nós que acompanhamos essa coluna, não chega a ser grande novidade, mas considerando o número de peças a serem feitas, compramos uma miniatura de Hércules (o dos 12 trabalhos) e colocamos mãos à obra de todas as maneiras possíveis.
Uma conversa esclarecedora com os sonoplastas da emissora nos confirmou que eles trabalhavam com CDs techno da década de 80 (imagine como isso agora soa antigo, leitor) e discos de música brasileira na linha Quinteto Violado, Turibio Santos e outros que, apesar de sua qualidade artística inegável, não podiam ser usados em qualquer sonorização pois seu espírito musical nem sempre combinava com o conteúdo das imagens.
Partimos para a produção do trabalho e a primeira maneira de trabalhar que pintou foi a mais tradicional:
1. Songwriting
Parece cada vez mais fora de moda, mas ainda é campeã na clareza e objetividade que proporciona quando chega a hora de passar as idéias para o tape ou computador.
Pegue seu instrumento preferido (musical, bem entendido, leitor) e comece a tocar para abrir as portas de comunicação do seu cérebro. Em pouco tempo você chegará a um pedaço de música que lhe agrada e que já pode lhe servir de base para a estrutura de composição da peça que lhe encomendaram. Pegue aquele seu velho caderno de música Guanabara e prepare a folha com duas pautas: uma para a melodia e outra para harmonia ou cifras. Quando tiver material suficiente para a duração que necessita, passe para o papel e no caso de uma chamada ou vinheta, deixe o primeiro compasso em branco para preenchê-lo depois com um efeito, virada ou frase musical que ajude a identificar a sua peça no meio da selva de sonoridades que é um break de uma emissora de televisão.
Depois de tocar repetidas vezes a sua peça, o arranjo e a instrumentação já estarão pintando na sua cabeça e você pode anotar no canto da página ou em cima dos acordes, as principais idéias, para quando for passar para o seu arsenal MIDI, você não ficar perdido.
É claro que o mesmo pode ser feito direto no computador, se você conseguir se segurar e não sair fazendo tudo ao mesmo tempo: composição, arranjo e mixagem. Apesar de parecer mais rápido e de gratificá-lo instantaneamente, um pouco de disciplina é fundamental e isso não diminui em nada a criatividade, apenas canaliza suas idéias de uma maneira mais objetiva.
2. Seqüências Harmônicas
No caso de peças musicais que servirão de fundo para locuções ou diálogos, nem sempre a melodia é o mais importante e, se ela disputar espaço com o diálogo, pode ter certeza, leitor, que sua trilha vai acabar ficando bem atrás na mixagem, o que vai lhe causar um mau humor que sua namorada pode não agüentar.
Uma boa tática de composição poderá ser escolher um andamento que esteja de acordo com o clima musical pedido, e encadear uma seqüência de acordes com um som adequado ao conteúdo das imagens.
Exemplos quase infalíveis são o piano para peças institucionais, cordas para assuntos mais sérios, violão para as mais intimistas e assim por diante. Com outro timbre, você poderá reforçar as notas mais agudas das inversões de acordes que usou e com o uso de notas de passagem estabelecer um caminho melódico sem disputar lugar com a fala. (Ex. 1)
3. Melodia
O extremo oposto da tática anterior. Uma simples melodia de dois ou quatro compassos pode ser harmonizada de várias maneiras diferentes ou mesmo repetida, variando-se os elementos do background de forma a atender às necessidades da peça. (Ex. 2)
Se o seu visual é, por exemplo, alguma imagem que se refira à natureza, vale uma boa melodia modal que você pode assobiar enquanto esquenta mais um café. Vai resolver o seu caso e você ainda pode usar sons da natureza para fortalecer o clima antes de lançar mão de seus conhecimentos de harmonia, a bordo daquele pad analógico que o faz se sentir Lyle Mays por 30 segundos.
Acredite, leitor, as melodias que marcam são as mais simples e por isso mesmo mais difíceis de serem construídas, pois não há truques infalíveis para encobrir a falta de uma boa idéia melódica.
4. Loops
Começamos a entrar numa zona de perigo. A falta de tempo, a eventual entressafra de idéias, a rebeldia das máquinas, sempre podem nos levar ao uso indiscriminado de loopings em busca daquela sensação de ser Jimmy Jam por quatro compassos. Até ouvir na TV outro comercial usando exatamente o mesmo looping daquele CD que você comprou via Internet.
Você pode se sentir muito esperto por um momento, para depois cair na real e sentir que de alguma maneira deixou de aproveitar o mais gostoso do lance, que é a criação.
Use o loop como um ponto de partida. No caso de levadas, pense nele como um metrônomo sofisticado que é o que na verdade é. Construa sua peça usando o loop como referência e depois decida se vai usá-lo ou não. Se vai cortar, distorcer, comprimir e tantas outras possibilidades ao nosso alcance. Lembre-se: num mercado competitivo como o da música, bastante gente tem acesso às mesmas fontes de informação/inspiração. O que conta é COMO você usa suas ferramentas e não a marca do equipamento ou a quantidade de memória do seu computador.
Tente não se escravizar à perfeição "modinha" dos sons super tratados dos discos de loopings. Daqui a algum tempo eles provocarão a mesma espécie de sentimento que temos ao ouvir hoje um "electric piano" do DX7, que foi o preset mais usado de toda a indústria da música de todos os tempos. Se a idéia musical é boa, tudo certo, mas o som, o efeito, a "novidade" por si só não substituem um bom groove.
5. Ritmos
Se afinal somos um povo tão musical como dizemos, e a grande força da nossa música é o ritmo, porque não construir a partir dele a sua peça?
Claro, leitor, você não vai se limitar a escolher um som de caixa e outro de bumbo e esperar que qualquer tum-pá-tum-tum-pá resolva tudo.
No mínimo, você pode copiar uma track com uma programação qualquer de bateria e dividi-la em três tracks com três (ou mais) sons percussivos para cada parte.
O caminho inverso também é possível e você pode tentar gravar um padrão rítmico com um timbre como o de piano e depois copiá-lo para ser tocado por um set de instrumentos de percussão pouco convencionais como djembes, tablas e tantos outros transpostos para oitavas diferentes ou não, usando processadores de efeitos etc.
Os resultados podem ser muito interessantes. Não tenha de medo de experimentar, afinal é para isso também que você tem o seu arsenal tecnológico. Não é só chegar perto do som que está nos discos que você gosta, é chegar perto do som que está na sua cabeça e encurtar essa comunicação com o resto do mundo.
6. Grooves/ Levadas
Esse método foi uma salvação no nosso trabalho para o Futura, quando nos aproximávamos do cabalístico número de 60 peças e parecia que as idéias não queriam mais chegar. É mais fácil para guitarristas, mas você pode usar um som percussivo tipo guitarra pica-pau ou mesmo um riff de guitarra de um CD de loopings.
Veja a frase do Ex.3: é tudo muito simples e animado como um rodízio de chuchu. Se você abrir com uma seqüência de acordes com um pad, harmonizar o vamp de duas maneiras diferentes, transpuser um tom e meio acima e depois voltar ao tom original com uma assinatura e incluir umas notas longas de passagem, já terá escapado de uma momentânea falta de inspiração. Adicione ritmo com loopings e/ou programações e pronto, você já poderá passar para a próxima peça.
Se você brigou com a sua namorada e está sem ter o que fazer, mande seus resultados por E-mail através de MIDI files para mim, que eu mandarei o que consegui fazer para você leitor, sem ter brigado com a minha namorada.
7. Timbres/Sons
Essa é uma maneira que deve ser encarada com o mesmo cuidado que se deve ter ao usar loopings como ponto de partida. Todos os teclados ou módulos de som vêm com patches programados nos presets para impressionarem os possíveis compradores (é verdade que às vezes impressionam mal, mas não deixam de impressionar) - ou seja, eu e você, querido leitor, numa primeira audição.
Com quase todos eles acontece a mesma coisa: impressionam tanto, que é difícil resistir à tentação de fazer uma música usando-os como astros principais.
Evite o vexame de ouvir o mesmo som que você acha que foi feito só para você, servindo de trilha para um comercial de alistamento militar. Use-o apenas como ponto de partida para as suas idéias chegarem e depois que a peça estiver pronta, decida se vai usá-lo ou não. Se possível, tente alterar alguns elementos do timbre para dar um toque mais pessoal.
Não sou esnobe a ponto de desprezar o trabalho de um programador que queimou as pestanas para oferecer aos seus clientes uma fonte de inspiração, mas se você simplesmente usa esse elemento como a parte principal da sua composição, você estará perdendo os melhores momentos do trabalho, que são os da criação.
8. Conclusões
Esses são alguns dos métodos possíveis na composição de peças musicais que servirão de suporte a imagens. Existem muitos outros, como você pré-determinar uma instrumentação (cordas, percussão e flauta ou quinteto de sopros, harpa e xilofone), que você ache que se encaixam na idéia sonora da peça a ser desenvolvida, e usar as combinações rítmicas e/ou tímbricas proporcionadas por esses instrumentos para construir sua composição.
Não acredite muito numa espécie de papo que está muito em voga atualmente, do tipo: "...sampleei umas levadas, depois cortei, usei o time stretching do computador e fui adicionando outros efeitos, transformando o som, usei uns sons analógicos do teclado de brinquedo do meu sobrinho, joguei tudo no Pro Tools e depois fui escolhendo o que ia usar" .
Existe muita gente que trabalha assim, leitor, mas lembre-se que dessa forma você estará limitando suas idéias pelo conhecimento que você tem da máquina ou do software e a música não está em nenhum desses lugares e sim na sua cabeça.
Uma rápida coda: pensar no que se vai compor antes de sair gravando e quantizando no seu sequencer, não é caretice, é ser organizado. Ser disciplinado e objetivo não tem nada a ver com ser pouco criativo.
Strawinsky, cuja criatividade extrema estava tão à frente do seu tempo que teve que encarar uma ou outra vaia assombrosa ao longo de premières do "Pássaro de Fogo" ou da "Sagração da Primavera", escrevia duas horas de música por dia, no mínimo, até sua morte com mais de 90 anos.
Sem MIDI nem computador.
Você leitor, já deu a sua raspadinha hoje?
Vejo você no mês que vem com tudo que é necessário para gravar um CD dentro do seu quarto.
Até lá.
Fernando Moura é tecladista, produtor e arranjador. É pós-graduado em música para cinema, televisão e multimídia na Grã-Bretanha. E-mail:
mouramusic@trip.com.br Site:
www.trip.com.br/mouramusic