Lugar da Verdade
Mixagem Psicológica
Enrico De Paoli
Publicado em 01/02/2001 - 00h00
Sempre relutei em trabalhar com áudio para shows. Meu negócio sempre foi estúdio. Achava que o ambiente ao vivo me deixaria com hábitos irreversíveis - me tornando menos sensível. Verdade. A maneira de pensar e trabalhar dos que fazem shows é, definitivamente, diferente dos que fazem discos. Ao vivo tudo é mais drástico, do equipamento à maneira de usá-lo. Se não for assim, nossas pequenas manobras musicais não são percebidas pelo público e as manobras técnicas podem não ser suficientes para atingir os objetivos de correção que lhes cabem.
Só que, por mais que tracemos nossos rumos e metas, o mercado se encarrega de nos posicionar onde somos competentes, nos oferecendo oportunidades inesperadas. Não tenho tanto tempo de PA assim. Minha primeira grande tour aconteceu logo após a conclusão do CD "Malásia" (Djavan), emendando em vários outros trabalhos ao vivo. Durante os primeiros meses de shows, naturalmente, eu aplicava meu know-how de estúdio na estrada. O conhecimento de posicionamento de microfones e, em especial, do uso de processadores de efeitos, me trouxe grandes benefícios na mixagem de shows.
Mas o lucro de verdade chegou quando eu comecei a aplicar o que havia aprendido na estrada dentro do estúdio. Quando trabalhamos ao vivo, lidamos com infinitas variáveis em constantes mudanças de show para show ou, até mesmo, dentro de um único espetáculo. Em todos os aspectos. Acústica, energia elétrica, proximidade variada entre músicos, instrumentos e níveis diferentes. Baterias com afinação diferente, microfones diferentes, PA diferente, mesa, temperatura e umidade, vento... Sem contar, talvez, com uma das variáveis de maior peso: a energia gerada por uma boa performance ao público e o retorno dessa energia à banda. O que é capaz de proporcionar o que há de mais belo em um grande show - a perfeita interatividade entre palco e platéia.
Bem, para contornar todas essas mudanças ao vivo, que não estão tão presentes no estúdio, precisamos arregaçar as mangas e usar nossos ouvidos. Infelizmente, somos constantemente bombardeados com paradigmas... No início, somos acostumados a fazer belas mixes estáticas e... Mortas. Mixar ao vivo trouxe movimento para dentro do meu estúdio. E me ensinou que podemos, em uma mix, ensinar nosso cérebro. Quer um exemplo?
Em um show não sabemos, precisamente, o que vai acontecer, da mesma forma que sabemos com uma faixa gravada. (Veja variáveis). Portanto, precisamos dançar conforme a musica, ou melhor, mixar conforme a musica. No show não temos a chance de voltar a fita e baixar um pouquinho o bumbo ou, então, "molhar" mais a voz... É tudo feito na hora. Nossos ouvidos se transformam em um radar e passamos o show inteiro refinando a mix até o bis. Não temos a chance de comparar se a voz no primeiro refrão está mais alta do que no segundo... Até porque não faz a menor diferença!
O importante é que, na hora em que ouvimos cada elemento, ele soe bem e natural. Fazemos o que achamos que devemos. Sem contar que, em uma música com arranjo muito cheio e denso, não dá pra ouvir tudo em todos os momentos. E, então? Simples. Ensinamos a nosso cérebro o som de cada elemento daquela mix. Uma vez conhecido, nosso cérebro consegue detectar os instrumentos mais escondidos da mix. Experimente solar um canal que está, aparentemente, enterrado na mix, depois você vai conseguir ouvir este canal até o fim da musica.
Como o ouvinte em casa não tem a chance de solar cada instrumento, nós o fazemos, apresentando o canal de forma presente no momento em que ele entra na música. Uma vez que a célula daquele instrumento foi apresentada, podemos abrir espaço para outra. Afinal de contas, enquanto estiver presente nos mais baixos níveis, ele será ouvido. Esta é a maneira de fazer soar tudo alto. Só não mixe olhando para o fader se mover, porque nosso cérebro acaba ouvindo o que nossos olhos vêem.
Boas mixes.
Enrico De Paoli é engenheiro de áudio formado pela Grove School of Music e pelo Musicians Institute, na Califórnia. Seus créditos incluem Ray Charles, Djavan e outros. Visite www.rio.com.br/~enrico