Fotos:Rodrigo Castro
Reinventar a bossa nova. Este parece ser apenas um entre tantos objetivos do Bossacucanova, trio carioca que funde elementos eletrônicos com acústicos e obtém resultados sonoros inusitados.Formado por grandes profissionais de áudio, os engenheiros de som e músicos Alexandre Moreira e Márcio Menescal e o DJ Marcelinho Da Lua, o grupo lançou três álbuns, fez carreira internacional e conquistou a admiração de nomes como Nelson Motta, Adriana Calcanhotto, Marcos Valle e Simoninha, entre outros.Em entrevista a M&T, Alexandre, Márcio e Da Lua contaram um pouco sobre como tudo começou. Do início de carreira aos equipamentos utilizados na produção de Uma batida diferente, seu mais recente trabalho, lançado pela Trama.
M&T: O Bossacucanova é, antes de uma banda, um grupo de velhos amigos...
Alexandre Moreira: É verdade. Eu e Márcio trabalhamos juntos desde 1987, como engenheiros de som do estúdio Synth, de Raymundo Bittencourt, que acabou se transformando no embrião da gravadora Albatroz.
Naquela época, só trabalhávamos com equipamentos analógicos. A tecnologia digital era um sonho. Os produtos que lançávamos saíam em CD somente em países desenvolvidos como o Japão, por exemplo. Em 1994, ao cruzarmos com Marcelinho [Da Lua], Dado e Bernardo Bittencourt, fizemos um selo independente chamado Cucamonga. Passamos a produzir diversos artistas, entre eles, Clara Moreno, Léo Perez e as bandas Coma e Vox 4. A distribuição destes produtos era feita pela Sony Music e depois passou a ser feita pela Ouver.
M&T: Quando e como, efetivamente, surgiu o grupo?
Alexandre: Em 1995, quando fomos à feira da AES, em Nova York. Lá, compramos um sistema de gravação chamado Soft Splice, uma espécie de hardware e HD num mesmo módulo, com entradas AES/EBU, conectado via SCSI 1. Ele tinha também entradas para S/PDIF e entrada para SMPTE, que tinha um draft ferrado, o que provocava uma tremenda quebra de sincronismo das pistas. Isso porque naquela época os profissionais de áudio não eram tão desenvolvidos e não sabiam que qualquer oscilação de fita ou qualquer tipo de variação no time code influenciaria diretamente no áudio final. Este equipamento foi lançado muito antes do Pro Tools.
Da Lua: Naquele momento, tivemos contato com a nata do acid jazz, gênero musical que estava em alta lá fora. Quando voltamos ao Brasil, decidimos fazer alguns remixes para utilizar este equipamento. Um de nossos primeiros trabalhos foi o remix de Só danço samba, do grupo Os Cariocas. Assim começou o Bossacucanova. Fizemos um disco inteiro de remixes, claro, sem a menor pretensão de que fosse dar certo. O nome do grupo é uma mistura de bossa nova com Cucamonga.
OLHO: Só percebemos isso [o sucesso internacional] quando estávamos na França, com Da Lua discotecando no mesmo palco que Fat Boy Slim.
M&T: Este disco teve uma repercussão internacional, certo?
Alexandre: Quando percebemos isso, estávamos na França, com Da Lua discotecando no mesmo palco que monstros como Fat Boy Slim. Era um festival gigante, com um sistema de som fantástico da Meyer. Estávamos sendo assistidos por uma multidão.

Alexandre Moreira e seu Soft Splice, um dos primeiros equipamentos adquiridos pelo trio.
M&T: Como vocês fizeram para executar essas canções-remixes ao vivo?
Alexandre: Registrar e executar tudo isso são dois trabalhos totalmente distintos. O grande desafio é descobrir como será feita esta execução. Certa vez, fomos convidados para uma apresentação ao vivo numa rádio nos Estados Unidos. Levamos alguns equipamentos como samplers e uma Akai MPC, que tornaram nossa logística viável. Hoje, contamos com Ricardo Siri na percussão; Rodrigo Chá, nos sopros e vocais; o maestro Flávio Mendes, na guitarra; e a Cris Dellano nos vocais, músicos que nos acompanham na estrada.
M&T: Qual o setup utilizado por vocês atualmente?
Alexandre: Utilizo um IBook G4, que é meu módulo de teclados e um software Reason - pois tenho uma biblioteca grande de sons de piano acústico -, além de um Fender Rhodes e um Hammond. Meu controller é um Yamaha SY85, que é bastante ágil para utilização em MIDI. Através dele, chamo os setups do programa e faço o assembler em sua interface MIDI, enviando cada um desses timbres para um canal próprio. Em alguns momentos, utilizo delays que são programados no exato BPM das músicas. Tenho também um Groove Box Roland MC505 e uma workstation Roland VS1680, que utilizo para disparar alguns loops.
Da Lua: Utilizo, além do setup básico de DJs - duas pick-ups Technics SL1200 MKII e um mixer Vestax 05 Pro - uma mesinha Behringer, com quatro canais estéreo, um teclado Novation, dois delays, sendo um Ibanez e um Nashville, e uma Akai MPC2000, que utilizo para disparar algumas bases e vozes.
Márcio Menescal: Utilizo um contrabaixo Fender Jazz Bass e um baixo Yamaha SBV500, além de um pedal Electro-Harmonix Bass Synth e um Bass Ball.
M&T: Como é a vida de vocês fora do grupo?
Márcio: Cada um cuida de suas atividades paralelas. No entanto, juntos, lançamos recentemente um CD de música eletrônica chamado Ipanema Lounge, que é um trabalho totalmente diferente do que fazemos com o Bossa, mais voltado para outra vertente do eletrônico. Além disso, acabei de produzir um trabalho com Alexandre, para o selo Albatroz e fizemos o remix de Mais uma vez, nova música de trabalho do Jota Quest. Foi uma experiência muito bacana, principalmente porque trabalhamos sobre as bases que foram gravadas ao vivo pela banda.

O DJ Marcelinho Da Lua Já dividiu o palco com o inglês Fat Boy Slim
M&T: Fazer um remix de uma faixa ao vivo é bastante peculiar, não?
Márcio: Pois é, tem uma história engraçada em torno desse tema. Certa vez fizemos um remix em ritmo de jungle de Vem, meu amor, canção da Banda Eva. Isso em 1997, período em que o eletrônico ainda não era tão difundido popularmente. Lembro que Marcelinho e o [DJ] Calbuque produziam a Febre, uma festa local, mas o gênero ainda não era tão conhecido. Então, em razão deste desconhecimento, o remix não pegou. Nem a própria gravadora conseguiu captar nossa idéia. Hoje em dia, o drum'n'bass e o eletrônico, em geral, são ritmos que tocam em festinhas de criança (risos).
M&T: Vocês foram convidados pelo próprio Jota Quest?
Márcio: Sim, Rogério nos mostrou a música, uma verdadeira balada e solicitou um remix mais voltado para o drum'n'bass, aproveitando apenas alguns trechos de seu original. Fizemos uma versão completamente doida, mudando a construção de estrofes e refrão, enfim, piramos sobre o tema. No entanto, em determinado momento da produção, Rogério avisou que gostaria de colocar uns canais extras de voz, então tivemos a idéia de fazer uma segunda versão, mais próxima da original, para que ele fizesse as inserções vocais. Ao ouvi-la, ele nos contou que gostaria de algo mais psicodélico. Novamente retomamos a primeira leitura dos remixes e ele adorou, dizendo que era exatamente isso que desejava. O mais curioso de tudo é que nós achávamos que não gostaria (risos). A música ficou muito boa, com elementos de reggae e dub.
M&T: Como foi a participação de Roberto Menescal, que cantou a faixa Feitinha pro poeta, presente neste novo trabalho?
Alexandre: Esta foi a primeira vez em que ele gravou voz solo em uma música. Sua participação foi vital para nosso trabalho. Seria burrice se não usássemos tamanha proximidade que temos com ele.
Da Lua: Menescal é mais que um companheiro. Esteve conosco em nossa segunda turnê, Brasilidade, e é um grande entusiasta de nosso trabalho.
M&T: Quais são as facilidades e dificuldades de se reunir, num único trabalho, elementos tão distintos como o violão e o sampler?
Da Lua: Procuramos tratar as coisas de modo que encontrem um ponto comum. Tudo isso é resolvido nas edições.
M&T: Onde foi gravado Uma batida diferente?
Alexandre: O álbum foi totalmente registrado aqui no Estúdio Jam, que é de propriedade da cantora Jane Duboc. Levamos pouquíssimo tempo para gravar e muito para finalizar. Ficamos meses editando o material. A pré-produção do trabalho foi feita em laptops, fones de ouvido e uma M-Box. Todo o material registrado neste período foi utilizado no produto final.
Marcio Menescal e os companheiros fizeram o remix jungle de Vem, meu amor da Banda Eva quando ninguém no país fazia.
M&T: A ficha técnica do álbum é riquíssima. Como se deu a participação de cada um dos artistas que ajudaram a compor a obra?
Alexandre: Simoninha interpretou magnificamente a canção Essa moça tá diferente, de Chico Buarque. O convidamos para cantá-la e, prontamente, aceitou. Hoje, ele participa de nossos shows e se transformou num grande parceiro. Adriana Calcanhotto entrou em contato conosco enquanto participava de um projeto de artistas que musicavam poemas de Carlos Drummond de Andrade. Juntos, fizemos uma leitura musical do poema Páginas amarelas. Infelizmente, este projeto não vingou, mas ela acabou utilizando a faixa em um de seus discos. Enquanto gravávamos o trabalho, pedimos a ela que escrevesse e cantasse uma música conosco, o que, de fato, ocorreu. Nelson Motta também nos presenteou com uma letra fantástica. Marcelinho desenterrou um depoimento de Roberto Menescal, dado em 1968, que, em um trecho dizia que sua bossa nova predileta era a que não tinha conotações político-sociais. Este sample deu origem à música e Nelsinho escreveu algo em cima, que falava sobre o amanhecer carioca. Chama-se Bom dia, Rio. Marcos Valle foi nosso parceiro em outra faixa e Celso Fonseca também deixou sua contribuição. Além destes, tivemos as participações de Cidinho, músico que acompanhou Paul Simon, Laudir de Oliveira, que tocou com o grupo Chicago, e Esguleba, percussionista de Zeca Pagodinho. Enfim, cada um contribuiu como pôde.
M&T: O fato de ter composto, produzido e registrado o álbum contribuiu para dar uma cara ao som do grupo?
Da Lua: Estamos cada vez mais próximos de nosso objetivo, ao ponto de que a bossa nova está deixando de ser apenas um ritmo para se tornar um novo gênero musical. Já utilizamos, em nosso trabalho, muitos elementos de samba e elementos pré e pós-bossa.
M&T: Como registraram o álbum?
Alexandre: Utilizamos, basicamente, um Pro Tools Mix Plus. Mas o grande lance desta gravação foi ter utilizado um pré-amplificador Millenia Twin Direct. Este equipamento nos permitiu utilizá-lo como Solid State ou valvulado, o que nos abriu muitas possibilidades, dando várias colorações ao som captado. Algumas faixas foram mixadas no estúdio da Trama, que tem um console Neve fantástico, além de uma infinidade de periféricos analógicos.
M&T: Existe algo no Pro Tools que vocês não apreciem?
Alexandre: Se existe uma vírgula a se dizer desta plataforma é qualidade dos reverbs, que não têm a profundidade existente nos equipos externos. Isso você percebe ouvindo uma simples Lexicon MPX1, que está longe de ser top de linha como a 960 ou a 480. Com sua utilização, percebe-se uma sonoridade e profundidade totalmente diferente do plug-in Lexverb, por exemplo. Fora isso, nada nos incomoda.
M&T: Qual o critério para a escolha destes equipamentos?
Alexandre: Costumo utilizar o ouvido mesmo (risos). Vou na orelhada e, geralmente, chego ao resultado esperado. O operador de áudio não pode ser preguiçoso, tem que fuçar tudo, senão acaba limitando suas possibilidades. O áudio digital é muito mais agressivo e rascante que o analógico, sobretudo nas freqüências de ponta, como graves e agudos, onde, ao meu ver, deixa a desejar. A conclusão a que chegamos é que, ao gravar equalizando certas freqüências, se promove uma economia na utilização de plug-ins durante a mixagem, o que consideramos grandioso para a qualidade dos resultados.
M&T: Como é trabalhar em estúdios tão distintos como o Jam, uma espécie de home studio e o estúdio Trama, um dos mais bem equipados do país?
Alexandre: Fui criado em estúdios de gravação. Aprendi a gravar num console analógico, que transbordava de tantos potenciômetros (risos). Então, não vejo muitos problemas. Acompanhei o avanço da tecnologia analógica para a digital e procurei me informar quanto a isso. Hoje é tudo muito diferente. Você grava aqui, salva em seu HD e leva para a casa do amigo, ou seja, para outros estúdios ou computadores. Uma maravilha!
