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Revista Luz & Cena
Mixagem
Como escolher o que utilizar em uma mixagem
Fábio Henriques
Publicado em 28/01/2013 - 17h20

Meu amigo Enrico mencionou uma questão interessante aqui na revista mês passado, e até citou os Guias de Mixagem, abordando a questão da escolha das ferramentas a se usar em cada caso. Gostaria então de colocar aqui o meu ponto de vista a respeito do assunto, até como uma consequência direta do conteúdo e da abordagem dos Guias. Eles têm o objetivo direto de contribuir para que as pessoas cheguem aos resultados desejados através de seu próprio desenvolvimento, ao invés de levantar questões sem apresentar soluções. E pela resposta que tenho obtido dos leitores, acho que tenho conseguido.

A gama de possibilidades é enorme, tanto de meios quanto de resultados, e uma pessoa menos experiente pode se deparar com uma insegurança compreensível. Dado um certo canal, o que devo usar para chegar ao resultado que desejo e preciso? Qual será o efeito no conjunto da música daquilo que eu usar especificamente neste canal? Isso até nos leva a uma discussão ainda mais básica: o por quê da necessidade de, afinal, se usar algum processador em um som gravado.

O OBJETO DO TRABALHO

Antes de mais nada, é preciso lembrar da mais importante das coisas em um trabalho: o cliente. Ele é a finalidade de todo o nosso esforço. Por mais perfeita que uma mixagem soe para nós, se ela não agrada ao cliente ou se demoramos a ponto de seu prazo e orçamento estourarem, o objetivo não foi alcançado. Por isso, torna-se fundamental que desenvolvamos as capacidades de se entender o que se precisa, de decidir que ferramentas usar e como fazer isso no menor tempo, sem prejudicar a qualidade final.

Assim, o mínimo que a gente precisa saber ao se deparar com um canal a ser trabalhado é o que pretende usar, nem que seja somente a princípio. Embora seja óbvio o fato de que os diferentes canais que compõem uma mix interagem, esta interação está longe de ser um obstáculo tão grande a ponto de fazer com que nos confrontemos com uma indefinição. Afinal, se eu ficar indeciso porque a voz interfere no som do bumbo e vice-versa, eu não começo por canal nenhum.

Nesta nossa discussão, vamos nos concentrar nestes dois pontos básicos: vamos entender por que aparece a necessidade de se "mexer" no som de um canal e como se dá o processo de decisão sobre "o que" utilizar. A decisão de qual processador efetivamente usar vai depender de questões subjetivas (o gosto de cada um) e objetivas (o que se tem à disposição), e entrar neste aspecto tornaria nossa conversa aqui um tanto inútil (determinar como escolher o modelo de equalizador, por exemplo, seria exaustivo e não estaria ajudando muito, porque, como diria famoso político, estaríamos "dando o peixe, e não ensinando a pescar").

Antigamente, antes da chegada das DAWs (Digital Audio Workstation - Pro Tools e similares), havia uma certa "facilidade" neste aspecto. A gente simplesmente não tinha ferramentas suficientes. Tinha um equalizador por canal na mesa, mais uns poucos processadores no rack e olhe lá. Se a mesa fosse realmente bacana, tínhamos o luxo de um compressor por canal, o que facilitava bastante, mas daí até a gente poder escolher qual equalizador ou qual compressor queria usar havia uma enorme e intransponível distância.

Quando vejo hoje em dia alguém usando seis ou sete reverbs em uma música fico pensando como esta pessoa faria naquelas épocas. E não estou falando de muito tempo atrás, não. Até meados da década de 1990 era basicamente isso: poucos recursos e muita criatividade.

Mas vejamos, afinal, o que determina se precisamos ou não moldar o som de um canal.



A INTERAÇÃO DOS INSTRUMENTOS

Imaginemos um recital de música clássica em que uma cantora interpreta uma peça acompanhada de uma orquestra de cordas. Será que o som que sai dos violinos muda o som da voz? Ou será que a voz muda o som dos violinos? De fato, ouvir voz e violinos é diferente de ouvir cada um em separado, mas a interação deles é um fator artisticamente construtivo, e não destrutivo. Como não há jeito de "equalizar" os violinos ou a cantora acusticamente, por que será que surge a necessidade de fazê-lo eletronicamente, num ambiente de mixagem?

A primeira diferença é o jeito como se grava. A situação em que ouvimos uma cantora e uma orquestra de cordas ao vivo (e sem amplificação) equivale eletronicamente a colocarmos um microfone estéreo na mesma posição e altura de nossos ouvidos. Desta forma, na "mixagem", certamente não precisaríamos mexer nem no som de um nem de outro (descontando momentaneamente as colorações provocadas pelo microfone). Na verdade, este tipo de gravação é extremamente realista, e existem situações, tipicamente na música clássica, em que se grava exatamente assim: numa sala de concerto com uma acústica excepcional, com apenas dois microfones estrategicamente colocados. Um belo exemplo é Moussorgsky: Pictures at an Exhibition/Night on The Bald Mountain, com Lorin Maazel regendo a Cleveland Orchestra, da Telarc/Lim, que mesmo sendo uma gravação de 1979 (uma das primeiras gravações em digital a aparecer no mercado), continua em catálogo. É uma performance fantástica e o som é de tirar o fôlego. Pode ser encontrada em diversas lojas na internet, como na Amazon, em http://tinyurl.com/nightmountain.

Porém existem dois aspectos importantes a considerar. Gravar deste jeito nos impede de mexer à vontade no som de cada instrumento, e nem sempre as performances de todos os músicos são equivalentes em termos de qualidade. Assim, em nome de termos o poder de controlar à vontade (dentro de certos limites) o som de cada instrumento, gravamos em separado e/ou colocamos os microfones mais próximos a cada um deles. E este jeito de gravar, embora seja extremamente útil, é, infelizmente, completamente antinatural. Não quer dizer que a falta de naturalidade seja ruim. Nada nos obriga a ficarmos presos à naturalidade de uma situação. A possibilidade de mexer diretamente em cada canal é uma ferramenta criativa importante e por isso universalmente utilizada.

Vejamos o caso da bateria, por exemplo. Não há nada menos natural do que colocar um microfone a dois centímetros de distância da pele de cada tambor, ou do hi-hat. Ninguém ouve bateria desta forma. Porém, o poder que isto nos proporciona é imenso. E a coisa é tão poderosa que hoje em dia o som de uma bateria gravada é uma entidade que não tem muito a ver com a experiência de se ouvi-la acusticamente. Experimente entrar numa sala onde uma bateria esteja sendo tocada e perceba se o que você ouve chega ao menos perto do que escuta em um CD. É totalmente diferente. Não estou discutindo aqui o que é "melhor", pois isto é uma questão subjetiva. Objetivamente, porém, o som da bateria moderna gravada (principalmente na música pop) é uma construção a que todos nos acostumamos.



Pois bem, gravamos as coisas separadas e nos preocupamos individualmente com a qualidade de cada canal. Quando estamos "timbrando" um instrumento, estamos otimizando o conjunto formado por ele mais a sala, o microfone, sua posição, o cabo e o pré-amplificador, de forma que o resultado gravado seja o mais funcional possível. Não necessariamente o mais funcional significa o mais "bonito". Como a gente não sabe ainda o que será preciso fazer neste som quando ele for somado aos demais, é sempre bom deixar uma margem para manobra. No tempo da fita analógica a gente tinha já que imprimir um som mais próximo do desejado, por causa das limitações da mídia. Com os gravadores digitais, porém, posso afirmar sem medo que não existe a menor necessidade de se equalizar durante a gravação. Não é proibido fazê-lo, mas também não é necessário. Uma certa compressão pode ser útil para que os trechos mais suaves não percam qualidade na conversão para digital, mas se for usado um sistema de 24 bits, arrisco dizer que nem isso é absolutamente necessário.



Resumindo, então, na mixagem a gente precisa realmente tomar cuidado com a interação dos diferentes canais para que a soma de todos soe bem, uma vez que o jeito de gravar não leva em conta esta interação. Agora, o fato deste fenômeno ocorrer não é determinante: é apenas uma consequência do método.

PROCESSAR É PRECISO?

Tomando então um canal que desejamos inserir numa mix. Um bumbo, por exemplo. Eu estaria gastando o tempo valioso do leitor se ficasse aqui discorrendo sobre todas as possibilidades que enfrentamos nesta situação. Pra quem gosta de matemática, costumo dizer que uma mixagem é um sistema com mais variáveis do que equações, e, consequentemente, pode ter infinitas soluções ou nenhuma solução, mas jamais pode ter uma solução única (confira em Resolução de Sistemas Lineares, de J. M. Martínez e A. Friedlander). Pra quem não gosta, mesmo assim dá pra sacar que não existe "a" mixagem, mas "as possíveis mixagens". Não há mixagem errada, embora haja muitas mixagens certas.

Dizer aqui que cada equalizador tem um som ou um comportamento não ajuda muito. Então, o que buscamos sempre é simplificar. O ser humano tem esse jeito de resolver os problemas, seja pra levantar uma parede ou pra mandar um foguete pro espaço. A gente simplifica um problema grande, transformando-o em algo resolvível. Então, em vez de dizermos que não sabemos o que usar porque esse bumbo tem a sua individualidade e será acompanhado por mais algumas dezenas de canais, precisamos é nos apoiar fortemente na única coisa absolutamente definida quando se começa uma mixagem: a ferramenta que será usada para ouvi-la - nossos ouvidos.

Quando começamos a trabalhar em uma música, a única coisa de que temos certeza é que nossos ouvidos serão nossos guias e nossos juízes, e é por aí que devemos começar. Ou seja, voltando ao nosso bumbo primordial, vamos simplesmente ouvir o que ele tem a dizer. A partir daí a primeira coisa que precisamos gerar é uma opinião a respeito dele.

FORMANDO UMA OPINIÃO

No meu primeiro dia trabalhando em estúdio, lembro-me de observar o mestre Guilherme Reis equalizando um bumbo e me perguntado "como é que ele sabe que já está bom?". Ou seja, quando é que o som já está "o melhor possível"? A resposta tem duas partes. Primeiro, ao ouvir o som original precisamos emitir um julgamento sobre ele. Com base na experiência prévia que temos de ouvir este mesmo instrumento em outras oportunidades já podemos ter uma ideia a respeito do que fazer e se é preciso fazer algo. Se nunca ouvimos nada parecido, acabamos usando o velho bom senso mesmo. A segunda parte da resposta, porém, é talvez a mais interessante: nós não precisamos acertar de primeira. A gente pode se dar ao luxo de errar em nosso julgamento. O que fazemos é, então, montar uma opinião a respeito do que ouvimos e trabalhar em cima dela. Se lá na frente descobrirmos que nossa opinião precisa ser revista, não há o menor problema.

Mas e se eu julgar que um som precisa ser trabalhado e melhorado, o que posso usar para isso? Bom, felizmente as possibilidades não são tantas assim. A princípio, podemos mexer na resposta, em frequência, no volume e na ambiência. Como estamos trabalhando apenas em um canal, podemos momentaneamente parar de nos preocupar com sua interação com os outros. Ocupemo-nos, então, apenas com o som dele. Se julgamos que existem regiões de frequência que precisam ser mexidas, inserimos um equalizador. Se existem muitas variações de volume no canal, podemos inserir um compressor ou atuar no próprio áudio, alterando o ganho de certos trechos. E por aí vai.



Agora, qual equalizador especificamente usar? Qual compressor? Pois bem, neste ponto eu vou contar o maior segredo para mixagens felizes e tranquilas: aprenda com tudo o que você fizer. É a velha história da experiência. Certa vez um cliente me perguntou como eu conseguia ter uma solução rápida para os problemas, e minha resposta foi: "eu já sofri muito". Em resumo, se a gente aprende com tudo o que faz, vai montando um estoque de soluções para os problemas. E os erros e os problemas ensinam muito mais do que os acertos. Assim, na próxima vez em que você trabalhar em um instrumento, procure memorizar o tipo de solução que usou. Depois de você corrigir uma "cantada" de caixa de bateria atenuando 490 Hz em umas três situações, provavelmente já irá direto nessa frequência na quarta, mesmo que lá na frente seja necessário reajustá-la. Este será o ponto de partida. E quanto a quais plug-ins ou processadores efetivamente usar, depois de um tempo você vai observar que existe um grupo relativamente pequeno de ferramentas que a gente acaba preferindo. Isto não é errado: é apenas producente. Se determinado equalizador lhe deu um resultado bacana hoje, por que não começar usando ele na próxima vez?

Só que a gente não deve esperar até a hora de uma mixagem ou gravação pra valer para testar as ferramentas de que dispõe. Assim que temos acesso a um novo equipamento, plug-in ou processador, precisamos testá-lo o mais rápido possível na maior quantidade de situações que pudermos. Desta forma, estaremos aumentando nosso vocabulário de recursos e já poderemos estabelecer mentalmente em que situações poderá valer a pena usá-lo.

Sinceramente, uma mixagem em que cada canal usa um equalizador de modelo diferente me parece um tanto caótica. Não acho errado experimentar. Muito pelo contrário. Mas também acho que esta experimentação deve ser reservada para os momentos em que ela será útil. Se a gente lembrar que existe um cliente com orçamento e prazo a serem respeitados (e eles sempre existem, mesmo que o cliente seja você mesmo e o dinheiro seja o seu), levar tempo demais pra escolher qual equalizador usar no bumbo deixa de ser esmero e passa a beirar a falta de consideração. É óbvio que cada instrumento tem sua individualidade, cada músico tem seu som próprio, cada microfone, sua resposta, mas um bumbo é um bumbo, e as soluções que a gente usa em um são bem próximas das que usaremos no próximo. Partir do zero a cada canal de cada mix me lembra o personagem de Guy Pearce no filme Amnésia, que só lembrava dos últimos 30 segundos de sua vida.

COMO RESOLVER

Resumindo, realmente é interessante reconhecer que o problema da escolha do que se usar tem duas abordagens. Primeiro, podemos simplesmente dizer que não se pode determinar a princípio essa ou aquela solução, mas prefiro - como os leitores dos meus Guias de Mixagem sabem muito bem - oferecer ferramentas que os auxiliem a efetivamente resolver os problemas que aparecerem, deixando claro, como sempre, quando estou citando um fato ou emitindo a minha opinião.


Fábio Henriques é engenheiro eletrônico e de gravação e autor dos Guias de Mixagem 1, 2 e 3, lançados pela editora Música & Tecnologia. É responsável pelos produtos da gravadora Canção Nova, onde atua como engenheiro de gravação e mixagem e produtor musical. Visite www.facebook.com/GuiaDeMixagem, um espaço para comentários e discussões a respeito de mixagens, áudio e música.
 
Conteúdo aberto a todos os leitores.