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Edição #117
abril de 2009
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Capa: Arrufos
O espaço do amor do Grupo XIX de Teatro
por Renato Bolelli Rebouças 04/04/2009
foto: Ale Santos
Na peça Arrufos, os rituais do amor são evidenciados nos objetos espalhados pelo espaço cênico e manipulados pelos atores
Arrufos é o nome da terceira peça do Grupo XIX de Teatro, companhia paulista que pesquisa as relações entre espaço, interatividade e memória, e ocupa edifícios históricos, geralmente abandonados, para contar suas histórias.

O projeto do espetáculo, iniciado em 2006, é resultado da pesquisa continuada do grupo e especificamente minha que, integrando o coletivo como diretor de arte desde 2004, registro imagens e artefatos da história privada do Brasil em viagens da companhia a cidades históricas.

Com esse trabalho, ganhei os prêmios Shell de 2008, pelo cenário, e o da Cooperativa Paulista de Teatro, na categoria Projeto Visual, que engloba cenografia, figurino, iluminação e até arte gráfica, numa tentativa de ampliar esse conceito. O grupo concorreu ao Shell na categoria Especial pela pesquisa e criação da peça.

Em Arrufos, fomos em busca do amor romântico, do casal burguês. A partir da leitura do livro História do amor no Brasil, de Mary Del Priore, pudemos perceber os mecanismos de controle social impostos através das diferenças de comportamentos e modelos para os relacionamentos amorosos nos séculos XVIII, XIX e XX. Para um grupo que carrega o século XIX até no nome, estava dado, nesse argumento, o roteiro, que conta, em três quadros, histórias simbólicas de amor (e desamor).

Durante a pesquisa, o diretor Luiz Fernando Marques nos apresentou Arrufos, quadro do pintor brasileiro Belmiro de Almeida do qual a peça toma emprestado o título. A cena retratada, que gerou tumulto na época - fim do século XIX -, expunha a intimidade de um casal burguês, justamente a definição de um arrufo: num quarto ou sala, uma pequena briga de casal. Nunca se havia retratado uma cena de tamanha privacidade, que fugia dos motivos usuais como a paisagem ou cenas históricas.

Na apresentação da tela, a sociedade questionou a situação: o que havia acontecido ali? Por que a moça chorava, toda amassada no chão? E o homem, por que se mostrava tão sério em sua impecável casaca preta? Ao deslocar a pintura para um tema subjetivo, Belmiro trazia o privado para o público e o desconforto foi total. Era o momento das transformações nas formas sociais e amorosas e a arte exibia essas novas questões para o século que se anunciava, revolucionário.

De lá pra cá, muita coisa mudou, novas tecnologias passaram a interferir em nossa forma de se relacionar, como a internet e os celulares, mas também muita coisa permaneceu sedimentada. Foi com esse questionamento que seguimos as primeiras discussões. E ao nos depararmos com Arrufos, a tela, percebemos que permanecemos ainda entre tapetes, tecidos adamascados importados, luminárias de luzes fugidias e rosas despedaçadas. Estavam ali constituídos os elementos do espetáculo, percebidos posteriormente.

Juntamente a cenas criadas e trazidas pelos atores, a pesquisa histórica nos fez seguir encontrando mais informações sobre esses elementos e o que eles significavam no mundo privado. Como a companhia trabalha em processo colaborativo, os artistas participantes propõem e interferem diretamente em todas as áreas. E assim pudemos, em aproximadamente um ano de pesquisa intensa, encontrar os caminhos e as histórias que seriam encenadas.

A ideia de resgatar três séculos em três cenas confirmava a vocação do grupo pela dramaturgia fragmentada, feita pelos próprios artistas a partir de documentos oficiais, depoimentos, fontes familiares e jogos nos ensaios. Entendi, ao longo do processo, que estávamos pesquisando formas das relações entre as pessoas. Como cada um se apresentava ao amor e ao ser amado? Quais os padrões adotados pela sociedade e pelas instituições de controle, como a Igreja e a medicina, para o casal? Percebemos, após inúmeras conversas, discussões e divergências, que nosso relacionamento atual é um somatório de todos os anteriores e absolutamente divergente. O desafio passou a ser contar uma mesma história, a de um casal, que nos três tempos vive situações diferentes e reincidentes, como se retratássemos a história de uma mesma família, dos tataravós até nós. Desafio este imposto ao espaço também.

A ARTE DEDICADA AO AMOR COMO INSPIRAÇÃO

O cenário, então, teria de retratar uma situação privada, de interior. A história do amor foi construída em espaços de intimidade e noturnos. Primeiramente, no século XVIII, por entre bosques e praças; no século XIX, em quartos e saletas, e, no século XX, em nossas quitinetes e em nossos corpos. A proposta de usar espaços históricos questionava como poderia definir três lugares em tempos distintos, sem se deter num modelo, mas usando uma arquitetura já existente?

O período romântico europeu foi usado para referenciar as escolhas das imagens, já que o modelo brasileiro copiava, sobretudo, o francês. A arte, especialmente a pintura, foi uma fonte de pesquisa, feita em parceria com estudantes e jovens cenógrafos e figurinistas na forma de workshops. Em seis meses, consultamos quadros, filmes, textos e fotografias, e ainda me dediquei à visita a museus e coleções históricas em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Salvador, durante as viagens da companhia.

Os temas habitação e intimidade foram aparecendo nas casas, suas decorações, ambientes criados para homens e mulheres, vestimentas. O caminho do século XVIII ao XXI parecia ser preenchido com objetos, adereços, coisas. A materialização do desejo, móveis, vestimentas, papéis sociais e escolhas sexuais registrados e idealizados pelas artes serviram como imaginário para a elaboração dos espaços e a escolha , entre tantos, dos elementos que comporiam o espetáculo. Os rituais do amor estão condicionados aos rituais dos objetos e seus usos. Leques, bengalas, brincos, perfumes, escovas, cartas, livros, luvas, flores, caixas... o museu da burguesia fora descoberto!

Não bastava colocar em cena uma xícara, queria entender como as formas e aparências das coisas significavam sentimentos. Como se pudéssemos nos afastar do amor e depositar, como artífices, nas formas, afetos e desafetos. Se já disseram que Deus está nos detalhes, para mim, o amor estava nos detalhes. Cada objeto escolhido deveria representar um ritual, e assim uma possível exclusividade me interessou. A busca passou pela história do mobiliário brasileiro, procurando imagens enraizadas em nossa cultura e também pelo questionamento de como o país adaptou e atualizou o modelo francês nos modos, modas e costumes para uma realidade tropical e colonizada.

Um grande repertório foi então montado e dividido em temas, como móveis, tecidos, estruturas arquitetônicas, vestimentas para diversas ocasiões, fontes de luz, acessórios e outros objetos que iam aparecendo. Tínhamos assim, um panorama de possibilidades para ser encontrado. E assim fomos a antiquários, brechós, feiras de antiguidades, casas de mães, tias e avós! Objeto a objeto, formou-se a vestimenta do cenário. Essas escolhas, realizadas junto com o diretor, foram oferecidas nos ensaios aos atores como ambientes interativos e as cenas eram criadas a partir da sugestão desses imaginários.

CENÁRIO OU INSTALAÇÃO?


Contar essa história passou a significar, para a direção de arte, contar também a história da iluminação artificial e dos materiais que cercavam a atmosfera amorosa, pois os percebia cada vez mais relacionados. A penumbra, o aconchego, o espaço para amar, namorar. Um ninho. 

A partir de um pequeno quadrado de três metros, inscrito entre os antigos pilares de um armazém caiado da Vila Maria Zélia (SP), nossa sede, foi concebida uma estrutura de onde surgia um novo interior, rubro, preenchido por arquibancadas-paredes e arrematado em duas extremidades por sacadas e passadiços, inspirados na arquitetura eclética. E ainda sob um dossel central, como se numa grande cama, seis atores (três casais) encenam o amor dos séculos, suas dificuldades e prazeres.

A plateia, sempre participante das peças, também solicitava seu lugar: de que forma poderia assistir a cenas íntimas? Imaginamos que ela poderia cumprir o papel de voyeur, cúmplice e objeto de desejo durante o percurso. Assim, formava-se a alcova em que todos participam.

Na arquibancada, cena e plateia estão integradas e em constante interação. Porém, com um detalhe. Já que o tema amor pressupõe duas partes, os espectadores sentam-se em dupla, como casais, reais ou formados ao acaso, na hora, em lugares específicos cuidados com almofadas e encostos revestidos com diferentes tecidos, de padronagens florais, e separados por um dos 40 abajures diferentes coletados. O percurso até aos locais de assento, a ideia de que cada um que fosse assistir ao espetáculo teria uma experiência única e especial foi refletida nas estampas, cores e objetos, como se pudessem formar um "panorama do amor".

A experiência era buscada em cada detalhe, queríamos que a plateia se surpreendesse com aquele lugar, tivesse vontade de amar naquele ambiente, se oferecesse ao amor. Que repensasse suas escolhas e percebesse que cada escolha imagética ali poderia ser seu reflexo.

O cenário de Arrufos então se tornou também um grande objeto, não autônomo, pois toda cenografia só toma sentido pleno na ação teatral, mas inteiro. Uma estrutura de ferro, modelo arquitetônico das grandes obras do século XIX, que espacializa um quadrado, uma caixa, a forma pura, total, e que guarda em si segredos e surpresas, como as gavetas dos toucadores femininos ou os bolsos dos paletós masculinos. Como uma instalação, carrega em sua forma a memória do armazém de 1917 da vila, quase uma casca, uma pele que é trocada e remontada em outro local. O amor materializando-se no objeto, executado de modo precioso e artesanal, em busca da perfeição, assim como buscamos nossos seres amados.

Montamos uma serralheria no armazém que durante quatro meses construiu todo o cenário, sendo mudada em detalhes conforme as cenas iam tomando forma. Ali, também, a equipe de direção de arte montava os encostos, costurava botões e fitas, adaptava os abajures, tingia tecidos e tecidos para testes. Uma grande oficina de manufaturas.

Era, na verdade, mais do que um cenário que estava sendo construído, era um pequeno teatro para 80 pessoas. A caixa dentro da caixa. Dificuldades técnicas foram vividas em relação à execução, prazos e custos. Toda a estrutura é desmontável, para poder viajar com o grupo, feita em ferro com assentos de madeira, e dentro dela estão embutidas fiações para a instalação dos abajures, que compõem a plateia e iluminam as cenas manipulados tanto por atores quanto pelos espectadores.

Também foram desenvolvidos abajures sem fio, alimentados por baterias, para os atores poderem se movimentar sem riscos.  No centro do dossel, um grande lustre acionado em cena oferece o único outro tipo de iluminação, toda feita com lâmpadas incandescentes.



TRÊS TEMPOS NUM ÚNICO ESPAÇO


Tínhamos três modelos a retratar. Primeiro, a família patriarcal, tolerância e inércia, existindo mesmo que as relações entre seus integrantes estivessem ruindo; depois, a descoberta da aparência no século XIX, a importação do modelo francês anunciando que nossa imagem poderia definir nossa essência, pois esta só poderia ser vivida em locais "seguros", onde fosse possível confidenciar segredos e desejos e ainda dividida por gêneros; e, enfim, a individualidade conquistada após tanta diferenciação entre os homens fez com que cada um tivesse sua própria crença de amor, mesmo que isso signifique passar a vida em busca de alguém que o partilhe. O movimento no espaço, assim, segue do centro para as extremidades, expande-se como as cidades e as emoções.

Abrem-se as cortinas do dossel e vemos um amontoado de gente e móveis. O século XVIII assim foi construído como um lugar escuro, rural, com a não diferenciação entre os espaços, móveis e vestimentas. Todos usavam camisolões, pobres e ricos, homens e mulheres. Ao centro, na sala do antigo casarão, assistimos a um velório, onde o morto, chefe da família, divide numa cama o espaço entre cadeiras, criado-mudo, toucador, escrivaninha e baú. Ali começa o jogo com a plateia, com perguntas feitas ao se acender os abajures. Poucos movimentos, móveis austeros deixados como testamento e a casa, maior legado, é anunciada para a amante.

Vemos fragmentos de memória dessa família, o casamento, as formalidades, a amante que fazia feitiços, amor e superstição. Ao fim, a mãe e esposa, calada o quadro todo, manifesta seu desgosto e contentamento pelo ocorrido e cobre todos os familiares com um imenso tecido preto, sua própria saia e vestido de casamento.

Enterrando esta forma estagnada, é que surge o século XIX. Debaixo dos panos e do pó, vem a euforia do novo século, as inovações técnicas e assim, os móveis vão tomando novos lugares na arena central e por entre espaços livres na arquibancada. O movimento espiralado inspirado pelas máquinas, a iluminação e os festejos, os bailes e teatros, o desejo de um amor que não fosse escolhido pela família, mas sim pelos amantes. Os gêneros se firmam em diferença, meninos e meninas, homens e mulheres tomam aparência quase oposta. Eles, de preto, com linhas rígidas e sóbrias; elas, volumosas, com saias imensas, feitas aqui com os próprios tecidos da cortina. Uma homenagem explícita ao filme E o vento levou, onde Scarlett faz uma saia da cortina de sua velha fazenda, renovando a tradição e transformando-a.

A cena ganha mais espaço e as sacadas se iluminam e se transformam em um quarto do palacete de uma jovem e em um passadiço de um cemitério, sobre uma ponte. Cada lado separado, unidos pelos jogos amorosos e pelos rituais de confissões. Esse quadro usa como base a burguesia e os espaços sociais como fundo de cena, pois nesses locais que eram combinados os casamentos e os negócios.
 
Da busca excessiva da beleza, resultante de imagens beirando o kitsch, partimos para a atualidade. O quadrado central é esvaziado, fica iluminado e vazio a espera dos 15 minutos de fama de alguém. Os móveis que restaram ali são relocados para a arquibancada, e, enfim, cena e plateia unem-se. Lado a lado, partilham pequenas visões sobre o amor de hoje, diversas e até opostas. Cada um no seu espaço, cada móvel conta uma memória e é usado de forma inédita.

Entre vazios e sobreposições, sins e nãos, seguimos com o olhar os seis atores que não mais circulam nas arquibancadas, pelo contrário, construíram seus territórios com seus cúmplices e conversam, simplesmente. De longe, parecem janelas de um prédio numa metrópole. Essa atmosfera informal mostra cenas caseiras, estamos em casa, sós, à noite, de pijama. Todas as pilhas de roupas usadas nos quadros anteriores viram cena, como se apontassem para o passado para tentar encontrar resposta para as questões do amor de hoje.

A estrutura continua presente, percorreu as três histórias e chega ao fim da peça demonstrando nosso insistente fascínio pelo romantismo. A representação é o próprio tema do amor e, ao esvaziar o espaço de quinquilharias, percebemos que aquela arquibancada, que parecia real, é cenário. E como cenário, exala seu vermelho intenso lembrando que esta cor, profunda, não remete apenas ao amor, mas também à dor.

 *Renato Bolelli Rebouças é arquiteto, cenógrafo e diretor de arte do Grupo XIX de Teatro.

 
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